Unidos também no ideal
Álvaro Cunhal tem 14 anos quando nasce sua irmã Maria Eugénia. Até ao final da vida foram anos de uma intensa relação, pródiga em afectos. Esse é um traço forte que perpassa a entrevista que Maria Eugénia Cunhal nos concedeu, ao falar do irmão nos seus anos de juventude.
Afável, recebe-nos em sua casa. A conversa flui. A memória recua e organiza o pensamento.
Nascido em Coimbra, é em Seia que Álvaro Cunhal passa grande parte da infância. Desses anos pouco se conhece...
Não falávamos muito desse período. Lembro-me apenas, por me contar, das breves brincadeiras fora de casa, pelo campo, com outros miúdos.
A Maria Eugénia nasce em Lisboa (1927), tinha Álvaro Cunhal 14 anos. Como era a relação entre os dois?
Lembro-me de o Álvaro chegar a casa, pegar-me na mão e dizer: «vamos dar uma voltinha». Dávamos uma volta ao quarteirão e eu achava aquilo um passeio fantástico… Era muito pequenina. Morámos em vários lados, em Benfica, na Av. 5 de Outubro e mais tarde na Miguel Bombarda.
Falamos de uma relação de grande proximidade...
Sim, grande, muito grande. Fomos sempre muito próximos. Um afecto muito forte entre os dois, toda a vida.
Havia cumplicidade, claro …
Sim, chamava-me a atenção para as coisas, ensinou-me muito, pelas pequenas coisas, a fazer-me reparar. Por exemplo, vivíamos numa casa com porteira, que tinha um filho. Ele disse-me: «Vê lá este menino chama-se Hélio. Sabes o que quer dizer? Sol. E vive numa casa tão triste que nem tem janelas». Com isso fazia-me ver o mundo para além daquilo que estava à vista, ter atenção às pessoas desfavorecidas, que tinham dificuldades.
E passavam muito tempo juntos?
Quando estava em casa passava muito tempo comigo. Era capaz de chegar a casa e dizer: «anda vamos fazer o lanche para mim e para ti».
E os seus interesses no dia-a-dia?
Lia muito, interessava-se por arte, falava de arte. Levava-me a uma exposição ou outra. Gostava de ouvir música. Também fazia desporto. E desenhou desde muito pequeno, muito bem. Ainda tenho desenhos dele, com nove, dez, onze anos... Desenhos muito bonitos!
E escrever?
Lembro coisas que escreveu quando estava preso e me ofereceu quando eu fiz anos. Há uma história que escreveu para mim e que também ilustrou.
E amigos, tinha muitos?
Era muito pequena…Não sou capaz de dizer com segurança. Sei que iam lá a casa, se eram muitos ou poucos não sei.
Há assim algum momento mais marcante que guardes desse tempo?
Houve tantos… Ele era uma pessoa bem disposta e alegre. Lembro-me de dizer uma vez, era eu muito novita, talvez dez anos: «Se um dia, quando acordares, não estiver aqui a minha gabardina ou sobretudo, já sabes que eu fui preso. E então tens de dar muito carinho aos pais, que eles vão ficar muito tristes». E realmente um dia acordei e não estava lá. Fui ao quarto dele e pensei: então a PIDE vem cá; e agarrei numa data de coisas que me pareceram importantes (se calhar não eram nada…) e pus atrás dos quadros pendurados na parede. Passado um bocadinho estava lá a PIDE, realmente. Aqueles papéis não apanhou e entre eles estava material para a sua tese sobre o Aborto.
É provavelmente ainda antes do ingresso na Faculdade que consolida a sua opção revolucionária. Quem o terá eventualmente influenciado?
Foi essencialmente por via do pai. Era uma casa burguesa, a nossa, mas a relação dele com o pessoal era bem diferente, não tinha preconceitos, de facto. Tratava as pessoas de forma igual, como falaria com qualquer pessoa, digamos, da classe burguesa. Nisso já se via o Álvaro… E lembro-me de ele chamar a minha atenção para isso.
Em 1931 (tem Maria Eugénia 4 anos), AC ingressa na Faculdade, inicia actividade política e filia-se no PCP. Como reagiu a família?
O pai apoiou sempre. A mãe sempre com muito receio de que ele fosse preso. Já tinha perdido dois filhos, de maneira que tinha muito medo sobre o que podia acontecer ao Álvaro. E não conseguia suplantar isso por ver a vida dele e as suas escolhas de uma maneira mais estritamente pessoal.
Feita a opção, foi a entrega à luta...
A luta fazia parte da sua maneira de estar na vida, de estar com os outros, da preocupação com os outros, com o bem-estar dos outros, com a dignidade da pessoa humana. Era isso que o fazia estar na luta. Não era uma coisa que entrasse só pela cabeça. Entrava também por aqui [e aponta ao coração], o amor aos outros, o interesse pelo ser humano, contra a exploração, contra a desigualdade.
E a passagem à clandestinidade, como foi recebida essa opção?
Com preocupação. Mas lembro-me de o meu pai, desde miúda, explicar-me o porquê das escolhas do Álvaro. Isto porque eu tinha muita pena de ele não estar sempre em casa, de não estar sempre connosco. E de o meu pai explicar, de maneira a que pudesse perceber, por que é que aquela era a escolha dele. E eu entendia.
Lembras-te da primeira prisão dele?
Lembro-me de ir ao Aljube. Parece que ainda tenho o cheiro do Aljube. E lembro-me de ver roupa do Álvaro com sangue, com sangue, que não era brinquedo, eu ficar a olhar para a roupa – “mas aquilo…” – e a minha mãe dizer: “não te preocupes, isso são uns bichos que lhe morderam…”
Tempos de violenta repressão policial...
Tinha eu acabado de fazer 18 anos – foi em Janeiro –, a PIDE apareceu lá em casa às três da manhã, que gostava de aparecer assim a altas horas. Ia prender o meu pai, que tinha lá o Avante!.
Estiveram lá três pides, três dias e três noites, em casa. A minha mãe disse logo que a gente não se deitava: «nós vamos para a sala, não vamos para o quarto». Ficámos ali com eles. E depois quiseram levar-me a mim para saber coisas do Álvaro.
Em que altura da tua vida abraças o ideal comunista?
É difícil dizer. Porque, no fundo, acho que sempre fui comunista, desde que tenho cabeça para pensar. Mas muito cedo, a minha opção foi tomada muito cedo, sem dúvida nenhuma.
Como é ser irmã do histórico dirigente do PCP?
Tenho um grande orgulho em ser irmã do Álvaro. Mas gosto que as pessoas me vejam, a mim, não que sou isto ou aquilo por ser irmã dele.
Mas acho que o Álvaro teve uma grande influência, directa, com a minha escolha ideológica. Quando nos falam da preocupação com os outros seres humanos e com a maneira como muitos são explorados e vivem mal, quando nos chamam a atenção para as crianças que não vão à escola e, à medida que se vai crescendo, para outras coisas mais alargadas, como as classes sociais, no fim, pensa-se: há-de haver um tipo de sociedade em que as pessoas não vivam assim. E depois chega-se à conclusão que a sociedade socialista, comunista é a escolha certa.