Para todos os que sonham
com coisas impossíveis

O azul e o negro

Francisco Mota

Olha Lili, estive a pensar, e esta vida que levamos não dá nenhum prazer, e é todos os dias igual. Pensei que o que devíamos fazer era mudar de ares, ir para longe, para onde não haja televisão, nem ministros, nem banqueiros, nem ladrões, nem gente sem vergonha. Devíamos arrumar as nossas coisas, levar o indispensável e apanhar um avião. Para onde? Também estive a pensar nisso. As Caraíbas estão muito vistas e cheias de gente, as cidades da Europa cada vez são mais iguais umas às outras, com os Maxburgers e os Macdonalds, as colas em lata ou garrafa, sempre nos mesmos sítios, para envenenarem melhor as pessoas. As viagens de aventura não têm aventura nenhuma porque está tudo programado desde a aparição do Papa no Vaticano até à recepção do Dalai Lama no Norte da Índia. Tudo é negócio. Cheguei à conclusão que deveríamos ir para umas ilhas pequenas no Índico, ao pé das Seicheles, ou para um atol do Pacífico, na zona de Taiti. Nestes sítios há umas plataformas sobre o mar e, ao longo delas várias cabanas de telhados de palmeira por fora e madeira por dentro, com todo o luxo, desde a cama até aos whiskies e gins. Pedíamos a última, para não sermos incomodados. Quando o sol nos acordasse, nus como tínhamos dormido, descíamos os três degraus até ao mar, azul turquesa e transparente, e misturávamo-nos com os peixes de centenas de cores e formas diferentes. De vez em quando apareceria um golfinho que se punha debaixo de ti, te levantava e com uma leve sacudidela te deixava cair na água. E tu rias-te, como uma jovenzinha de 18 anos. Este banho, obrigava a pedir o pequeno-almoço, que uma jovem local, bonita e falando inglês, nos trazia numa enorme bandeja. Eu só tomava sumos e frutas de que nem sei o nome.

Punhamos alguma coisa a que chamássemos roupa e caminhávamos pela plataforma até terra firme e com ou sem ajuda do pessoal, metíamo-nos na floresta, onde pequenos macacos saltariam de árvore em árvore, até chegar a alguma fonte de água fresca e natural. A essa, sim que se podia chamar «água mineral». Depois do passeio voltávamos e ficávamos por terra, para assistir a algum curso de yoga ou de cozinha local. Tu ias ao yoga e eu aprendia as justas proporções do leite de coco nos diferentes pratos, assim como as doses exactas de especiarias para que tudo não saiba sempre ao mesmo, como acontece agora nos restaurantes «exóticos».

Para almoçar comíamos frutas e pequenos pratos de carne ou marisco, que nos deixavam na cabana, e com mais banhos ou sem eles descansávamos no silêncio, só interrompido pelo grasnar das aves marinhas.

Quando chegasse a hora do jantar, tu com os cabelos soltos numa negligência aparente cobrias o teu corpo unicamente com uma túnica de linho, levemente transparente, sem mais nada. Caminhávamos até ao restaurante ao ar livre, onde escolhíamos cada dia um novo peixe e algum marisco, apanhado pelos pescadores nesse mesmo dia. Uns dias segundo a gastronomia local e outros só grelhados sem mais pamplinas. Pedíamos um branco frio que tivesse o cheiro da relva acabada de cortar e o sabor a maçãs e outros frutos verdes e levemente ácidos. E éramos felizes.

Lili ouviu tudo isto e disse: Oh! Jójó. Tu hoje já bebeste mais de um tetra-brik de vinho foleiro e agora estás a delirar. Se em vez de te pores com essas coisas malucas fosses arranjar mais cartões para nos cobrirmos melhor, porque voltou a fazer frio... Eu já desconfiava que te tinha dado a tremidinha, quando hoje, na sopa dos pobres, te puseste a dizer que aquelas batatas com uns bocadinhos de carne teriam ficado melhor com uns raminhos de cheiros. A senhora nem te entendeu, porque se te entende, embirra conosco e não nos deixam ir lá matar a fome, pelo menos uma vez por dia. Bem nos podemos dar por satisfeitos por ter a entrada desta casa abandonada onde podemos dormir, com os cartões das caixas que vamos apanhando. Eu só não entendo onde é que tu vais buscar essas ideias.

Lili, essas ideias acompanham-me desde o tempo em que tinha um trabalho, usava fato e gravata e me pagavam uma miséria, mas de que eu podia viver. Nesse tempo ia pelas agências de viagem e pelas feiras de turismo e vinha para casa com quilos de folhetos de propaganda de quase todos os sítios do mundo. Sabia, como hoje, que nunca poderia ir a esses sítios, nem a outros mais perto, mas lia-os todos. Depois a empresa fechou, não arranjei mais nenhum trabalho, o pouco dinheiro que tinha acabou-se e hoje uso gravata só para que o frio não se me meta pelo peito.

Pode ser que esteja louco, pode ser que morra amanhã, mas o sonho que esta gente me roubou só morrerá comigo.



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