O auto-retrato

Correia da Fonseca

Não se falará aqui da crise política supostamente ultrapassada, até porque não serão a televisão e a informação por ela prestada os melhores pontos de partida para a abordagem do tema de que outros bem melhor se ocuparão noutros lugares. Isto não significa, porém, que a televisão seja de todo imprestável para nos conduzir a temas significativos: de certo modo a TV continua a ser a «janela aberta para o mundo» que se autoproclamou nos seus tempos de lançamento; usemo-la, pois. Sob condições: não esquecermos que é um órgão de manipulação social antes de o ser de comunicação; que tem donos mesmo quando não se trate de televisão privada e que esses donos não abdicam de ter interesses, objectivos e estratégias; que a manipulação tem uma vasta panóplia de instrumentos e métodos longamente experimentados. Tudo isto vindo a propósito, ou não, da redução à dimensão mínima, operada pela TV portuguesa, de uma notícia não apenas merecedora de enorme destaque mas também denunciadora de algumas mistificações que por aí ainda se passeiam com o estatuto de verdades indiscutidas. Falo de soberanias nacionais, de independências, da legalidade como fundamento civilizacional, de coisas assim.

Washington como excepção

Trata-se da violência cometida por alguns estados europeus, entre os quais figura Portugal, contra a República da Bolívia na pessoa do seu presidente, Evo Morales. A fim de participar em Moscovo numa reunião de países produtores de gás, Morales viajara para a capital russa no avião presidencial da República da Bolívia e, finda a conferência, partira de Moscovo no mesmo avião, naturalmente, para regresso a La Paz. Acontece, porém, que La Paz é longe, digamos que do outro lado do mundo, e que um voo tão extenso reclama pausas a meio da rota para reabastecimento de carburante e até, eventualmente, para cuidados e revisões técnicas ainda que sumárias. Mais ainda: o natural e óbvio caminho aéreo de Moscovo a La Paz implica o possível sobrevoo de diversos países europeus, da Polónia a Portugal, o que regras antigas do Direito Internacional e do relacionamento diplomático há muito garantem com compreensíveis vantagens para todas as partes e para o convívio civilizado em geral ao nível dos estados. Complementarmente, saliente-se que um avião presidencial goza, é claro, de imunidade diplomática e salvaguardas afins, estatuto incompatível com a expressão de suspeitas quanto à prática de ilicitudes, desde contrabando a transporte de delinquentes. Porque a vida diplomática implica bons modos, alguma cortesia, fórmulas e acções respeitosas, o que é generalizadamente aceite. Mas não em Washington, pelos vistos, numa excepção que justificadamente escandaliza o mundo.

Mais uma página

Ora, paralelamente à reunião moscovita dos países produtores de gás, aconteceu o Caso Snowden, isto é, a fuga através de diversos países de um agente da CIA que, indignado perante práticas da Agência, decidiu revelar informações secretas e por aí incorreu numa perseguição implacável que bem pode terminar com o seu falecimento. Snowden estaria em Moscovo quando Evo Morales também por lá esteve, e alguns norte-americanos, espertíssimos, terão sonhado que bem poderia o seu compatriota ter sido acolhido no avião presidencial. De onde a ordem para os súbditos europeus: nada de permitirem escala ao avião de Evo Morales (que de resto é índio, isto é, de algum modo sub-humano para olhos USA), nada de reabastecimentos. Obedientes, logo os governos de França, Itália, Espanha e Portugal acederam à ordem e ignoraram as regras, as leis, os modos civilizados. Chegou Evo Morales a La Paz e aí foi aclamado calorosamente; organismos representativos dos estados sul-americanos (OEA, CPNASUL, CELAC, Mercosul, alguns outros) exprimiram o seu indignado espanto; as importantes relações dos países transgressores da civilidade internacional com os estados da América do Sul entraram em crise. Mas o inescrúpulo e a brutalidade de Washington em conjunto com a desvergonha e a subserviência de quatro estados europeus tinham escrito mais uma breve página da História contemporânea que é como que o seu auto-retrato de grupo. Página suja. Que inclui o nome de Portugal.



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