O estoiro

Henrique Custódio

Há escassas semanas o Presidente da República, Cavaco Silva, esclarecia que se recusava a usar «a chamada bomba atómica», ou seja, o poder presidencial de demitir o Governo e convocar eleições antecipadas. E disse-o no seu estilo soletrado, decerto na suposição de produzir ironia.

A ironia realmente aconteceu, porque a «bomba» acabou a rebentar-lhe no colo. Exactamente no início desta semana, quando Vítor Gaspar se demitiu de ministro das Finanças na segunda-feira e Paulo Portas se demitiu no dia seguinte de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.

Entretanto, o seu protegido Passos Coelho não lhe ficou atrás em matéria bombástica e, na mesma terça-feira em que Portas fez o anúncio da sua demissão, o chanceler, em comunicação solene ao jantar declarou que... «não aceitava a demissão».

Como os ministros demitidos ou demissionários só deixam de o ser quando substituídos formalmente pelo PR, Coelho neste passo parece querer «sequestrar» Portas (a aliteração ajuda à ladainha em que isto se tornou).

É claro que nada disto tem ponta por onde se lhe pegue, o Governo estoirou e Passos Coelho está de cabeça perdida ao afirmar a continuação de um Executivo que se desmantelou à peça, sendo patética a sua prosápia em final de discurso garantindo que não se demite «nem foge».

Entretanto, a sequência vertiginosa da queda do Governo – e apenas com os dados de momento disponíveis – constitui um retrato grotesco da degradação política a que chegara. Na segunda-feira de manhã a secretária de Estado do Tesouro, Maria Luís Albuquerque, realiza o breefing com os jornalistas – uma luminosa invenção do ministro Poiares Maduro – e nada diz sobre o que horas depois lhe desabou em cima: a demissão do ministro Vítor Gaspar e a sua ascensão ao lugar vago. No dia seguinte, o Presidente da República adverte que não contem com ele para derrubar o Governo, empurrando a decisão para a Assembleia da República, e marca a tomada de posse da nova ministra das Finanças para as 17 horas. Mas, uma hora antes, Paulo Portas anuncia a sua demissão e dá a estocada final na coligação e no Governo, o que não impediu Cavaco Silva de, grotescamente, «dar posse» à nova ministra e aos respectivos secretários de Estado.

Conclui-se que os protagonistas andaram afincadamente a aldrabar-se uns aos outros, seja Portas a ludibriar Passos e Cavaco Silva, seja Passos a driblar Portas e o Presidente, seja este último a enganar o País.

O que é certo é que Cavaco Silva já não se pode furtar mais a assumir a sua responsabilidade presidencial de convocar eleições antecipadas, pois agora enfrenta um flagrante não-funcionamento das instituições.

Se optar pelo absurdo de atamancar uns arranjos, verá que a luta, as manifestações e as greves dos trabalhadores e do povo não derrubam apenas governos – também vergam inanidades presidenciais.

 



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