Golpe de estado em banho-maria
Nov. 1977 – O artigo tem um título sedutor: «Vamos fazer a revolução», e diz coisas como estas: «Nos últimos anos temos assistido a uma queda constante da classe média, que ficou reduzida a 10% da população. Temos uns 85% de pobreza, 10% de classe média e 5% de privilegiados ricos» (...) «Temos de fazer a revolução na Venezuela» (...) «A classe média sofreu uma degradação patética...».
Uma verdade total.
Jun 2013 – Agora o título cheira a ameaça: «O golpe», e vai dizendo: «...levamos já 14 anos de regime militarista e o desespero é tão grande que alguns pensam que a solução é um novo golpe de militar».
Uma mentira absoluta e uma verdade total. O autor? O mesmo. Eduardo Fernández, político identificado com o mais rançoso da democracia-cristã, que apoiou o golpe de 2002.
Em 1977, um par de anos depois de o seu partido ter passado o governo à social-democracia, fazia-se desentendido como se não fosse corresponsável da denúncia em questão. Dois anos depois o seu partido voltava ao governo e a denúncia seria engavetada e tudo como dantes.
Em 2013 – 36 anos após as afirmações de 1977 – e há muitos anos com fome de poder, mente descaradamente quando fala de um «regime militarista». Uma breve olhadela à história contemporânea da Venezuela – que mesmo em períodos de democracia burguesa foi exemplo de repressão antipopular inventando o expediente da «desaparição» de opositores – mostra que o país vive o seu regime mais democrático de sempre. Provavelmente vive o que se poderia definir como um «excesso de liberdade» onde a reação conspira com total impunidade, situação que pode afogar em sangue o projecto bolivariano e custar muito caro aos venezuelanos e demais povos do continente.
Da última vez que a Venezuela sofreu um verdadeiro regime militarista – ditadura de Pérez Jiménez (1952-1958) – a gente do partido de EF nunca pôde escrever nem o artigo de 1977 nem o de 2013 e manteve-se bastante caladinha, tocando a resistência civil aos comunistas e a um sector da social-democracia, de que muitos militantes foram assassinados nesses anos. Se por um lado mente, termina dizendo uma verdade quando afirma, em 2013, «que alguns pensam que a solução é um novo golpe de militar». Para sair de Hugo Chávez, os seus deram um golpe em 2002 e desde então aos dias de hoje – agora contra o governo de Nicolás Maduro – andam a cozinhar outro golpe de Estado, por agora em lume brando, em banho-maria. No artigo de 2013, depois de inventar um empobrecimento geral da população (contrariado pelos números da FAO ), uma crise institucional artificial criada pelo desconhecimento golpista dos resultados eleitorais (tem sido sempre assim desde 1998), de inventar que os poderes públicos não governam (o que os irrita é precisamente que sim, governam) e de tratar de desprestigiar e deslegitimar um sistema eleitoral (Jimmy Carter diz que é o mais perfeito do mundo), chega à conclusão «brilhante» de que «com esses ingredientes, qualquer coisa pode suceder». Convite claro ao golpe militar ou – o seu grande sonho! – a uma invasão norte-americana ao estilo Iraque ou Líbia.
Entretanto e ao mesmo tempo em que crescem as tensões com Bogotá – o diabo do Santos não teve melhor ocorrência que receber o fascistoide Enrique Capriles, que desconhece o governo legítimo de Maduro – os serviços de inteligência bolivarianos anunciam a apreensão de dois grupos de paramilitares colombianos, devidamente articulados um com o outro, que ingressaram no país com intenções desestabilizadoras e provavelmente de magnicídio. E aqui voltamos à impunidade de que escrevíamos antes. Em 2004, foi detido outro numeroso grupo de paramilitares numa propriedade rural de um cubano anticastrista. Chávez, com uma clemência quase suicida, devolveu-os, depois de uma conversa, a Bogotá porque em grande parte eram jovens... sem experiência. Quem sabe se nos de hoje estão alguns dos de ontem...
Hoje como ontem a oposição quase não se refere ao assunto e quando o faz é para ridicularizar o governo em ambas as situações dizendo que são cortinas de fumo para distrair a população. Igualmente dizem que as denúncias de planos magnicidas são «coisas do governo», mas ficam em ridículo quando Reich ou Noriega dizem que os EEUU são tão bonzinhos que até alertaram Chávez sobre mais de uma tentativa de magnicídio. Parece, então, que alguém – adivinhe o leitor quem seria – sim, queria acabar com a vida do comandante bolivariano. Talvez o tenha feito por outras vias...