A Casa de Eulália 2

Eduardo Tavares Costa

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Um dos inúmeros méritos das comemorações do «Centenário» do nascimento do camarada Álvaro Cunhal é enviarem-nos para a revisitação da sua obra política, ficcional, gráfica, pictórica, do ensaio estético, de tradutor exigente. Eu fui impelido a ler «A Casa De Eulália»i, obra de ficção que aborda a guerra civil espanhola de 1936-39, guerra onde as forças imperialistas testaram armas, tácticas, estratégias, alianças da segunda guerra mundial que logo se lhe seguiu. Decerto por isso se afirmou que a guerra civil espanhola foi um ensaio da guerra mundial em processo.

Muitas razões me empurravam neste caminho. Ouvi, em seu tempo, contado de viva voz, por um outro herói legendário do Partidoii, a ajuda solidária à causa da República Espanhola dos camaradas Pires Jorge e Manuel Guedesiii. Conheci e trabalhei com o coronel João Varela Gomesiv, autor de várias investigações documentais sobre a participação portuguesa na Guerra Civil Espanhola e sobre o apoio dos portugueses à República. Eu lera duas enormes obrasv sobre a dita guerra, de historiadores conceituados, uma favorável à ideologia subjacente à República, a outra nem tanto, mas obras às quais a metodologia das ciências sociológicas conferia uma luz suficientemente clara sobre os acontecimentos principais.

Talvez por todas estas razões, quando iniciei a leitura da «Casa de Eulália» não esperava grandes surpresas. Enganei-me. É verdade que a referência aos acontecimentos cruciais estava lá e eu já a conhecia, mas vinha acrescida da cor, do cheiro, do som, da dor, da tristeza, do heroísmo, do temor, da espessa ambiência de vivências individuais tão verosímeis que se não emergiam do real, serviam de modelo ao real vivido. Já se escreveu que a escrita ficcional de Miguel Tiago tem um movimento cinematográfico, o que será verdadeiro, mas para mim, é como ver emergir, ali ao meu lado, acotovelando-me, um enorme fresco na linhagem dos de Rivera ou de Goya.

Escolhi dois desses frescos para vos incitar à leitura ou releitura dessa obra.

O primeiro narra o entusiasmo e a coragem com que a República espanhola, de carácter democrático e socializante (um socialismo que se queria verdadeiro e não de fachada rebocada à pressa), foi defendida. É uma narrativa de campo de batalha, da qual o pequeno-grande herói é um menino, que acompanha os combatentes da República, na expectativa de que um deles deixe cair a arma (por ter sido morto ou gravemente ferido) para conquistar o seu quinhão de glória.

Mas não tenhamos a pretensão de substituir Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.

«António e Manuel avançavam com os outros, seguindo comandantes surgidos espontaneamente das massas. Em certo momento repararam que os acompanhava a pouca distância um moço quase criança, desarmado. Manuel arranjou maneira de se aproximar mais.

- Que haces aqui? Vuélvete para trás! O es que quieres morir?

O moço não respondeu. Abrigando-se também do fogo, continuou a segui-los sem os largar.

- Vuelve atrás, eres loco? – Manuel parou para não o deixar passar.

Então o moço respondeu. Como se estivesse a conversar, não debaixo de fogo mas num sítio tranquilo da cidade.

- Si cae usted, cogeré su fusil...

Manuel, jovem comunista desde catraio, não insistiu.

- Viene, viene – replicou.

Agora era ele quem tinha cuidado para que o moço não se afastasse e para que melhor se abrigasse. (...) Foi então que António viu Manuel saltar do improvisado abrigo atrás de umas pedras e correr (...) Perto dele o mocinho espanhol sem arma.

(....) – Que te decia yo? – gritou Juan. Carabanchel ya está!...

Ia a acrescentar alguma coisa mais. António virava-se para lhe responder quando o viu tombar alguns passos atrás e ficar enrodilhado, rosto contra a terra. (...) Depois do Cuartel de la Montaña, Carabanchel. Sem desmerecer a acção dos militares fiéis à República, uma vez mais o povo decidira.»vi

Sobre este fresco duas notas. A transição súbita do português ao castelhano cumpre as funções de nos dar sem mais aquelas a atmosfera social vivida e o apoio internacionalista progressista à República. A postura ideológica do autor Manuel Tiago/Álvaro Cunhal vai-nos sendo passada ao longo da obra, através dos diferentes frescos e dos seus personagens, estilhaçando a concepção de que existem obras escritas imparciais, redigidas por um suposto observador de Sírius (pois, se até nas obras científicas é possível detectá-las, como a epistemologia vem demonstrando).

O outro fresco conta o Amor.

«Desta vez foi Eulália quem abriu a porta. Logo um abraço expansivo e demorado. Ele libertou-se num lento recuar, a olhá-la de frente.

- Bueno, estás vivo...

No comedor juntou-se-lhes Madrecita.

- Hijo mío, dame un beso a mí también.

Mútuas notícias. Manuel limitou-se a dizer que estava na frente. Fez referência aos seus companheiros. Falou dos combates pelo resultado, sem descrições (Manuel era um dos consabidos heróis desses combates) . Poucas palavras a falar de si próprio. E calou-se.

- Estás vivo, eso es lo que importa... – concluiu Eulália.

(...) Madrecita foi-se deitar. Ficaram os dois conversando. Em termos gerais. Da ferocidade do inimigo, da resposta armada do povo, de acidentes e histórias. Mais porém do que dos aconteciementos, qualquer coisa de subtil, imperceptível e envolvente se foi adensando e prendendo na conversa. Eulália reparava no rosto juvenil de Manuel, nos traços firmes, na pele tostada pelo Sol, na barba escassa, sedosa e por fazer, nos olhos francos de olhar directo. Manuel não conseguia furtar-se – e furtar-se porquê e para quê? – ao gosto de apreciar a cativante beleza da mulher que tinha na sua frente. No vulto de formas harmoniosas, nos olhos escuros, intensos, decididos e carinhosos, no rosto fino debruado pela cabeleira negra e no delicado recortar dos lábios (...).

Continuaram a conversar sem pressa, esgotando os temas. Talvez para que Madrecita dormisse tranquila, a voz era cada vez mais baixa, quase sussurrada.

- Bueno, hay que acostarse.

Levantaram-se. Eulália vagarosa, num falso gesto de se espreguiçar. Manuel sem despregar os olhos dela.

- Que descanses – disse.

(...) – Vuelves al Guadarrama?

- Si, a Somosierra.

- Te quiero vivo, sabias?

- Também te quero a ti.

- Sí, ya lo sé.»vii

Há quem sustente que o amor ficcionado por Manuel Tiago/Álvaro Cunhal se define ao nível do olhar, tal como no amor cortêz da poesia trovadoresca, ladeando as descrições sensuais, suadas sobre lençóis, tão típicas dos tempos que correm. Existirá alguma verdade nisso, mas também se lá pode subentender que no amor humano, entre pessoas concretas, deve existir um reduto não devassado, intransponível e intraduzível para os que não o vivem.

Este fresco-narração de um amor que se revelará eterno na sua fugacidade quebra igualmente o mito reaccionário de que os comunistas não levam em linha de conta os amores individuais e só serão sensíveis aos amores colectivos, aos amores de classe.

Muitas outras narrações da «Casa de Eulália» reclamam dentro de mim que lhes dirija um foco de luz. É impossível satisfazê-las a todas. A leitura do obra é indispensável. Mas não resisto a chamar a atenção dos que me lerem para a argumentação e a distinção que Álvaro Cunhal/Manuel Tiago estabelece entre esperança e confiança.viii Segue e seguirá sendo tão actual como quando foi escrita.

E por aqui me fico, com os votos de uma boa leitura ou releitura.

___________

i Tiago, Manuel – A Casa de Eulália; 1977, Lisboa, Ed. “Avante!”, pp. 202.

ii Rogério de Carvalho, um dos fautores da fuga do forte de Peniche.

iii Ajuda, aliás, que terminou bem prestes, pois os camaradas foram presos uma centena de quilómetros passada a fronteira e que se revestiu de episódios picarescos. Pode encontrar-se referência em : Pires Jorge, Joaquim – “Com Uma Imensa Alegria.” Notas Autobiográficas, 1984, Lisboa, Ed. “Avante!”.

iv Coronel João Varela Gomes, um dos principais protagonistas da tentativa de tomada do quartel de Beja, em 1962, e um dos dirigentes da 5ªDivisão depois do 25 de Abril de 74 e até ao 25 de Novembro de 1975.

v Thomas, Hugh – A Guera Civil Espanhola – ganhou o prémio Saumerset Maugham de 1961; teve umas quatro edições revistas; a edição portuguesa é provavelmente a tradução da 2ª edição inglesa, de 1977, com cerca de 700 pp; Jackson, Gabriel A República Espanhola E A Guerra Civil 1931-1939, 2 vols., publ.Europa-América, 1973, 690 pp.

vi A Casa de Eulália, capit. II, parte 5, pp. 40 a 42.

vii A Casa de Eulália, capit. V, parte 11, pp. 127 e 128.

viii A Casa de Eulália, capit. VII, parte 2, pp. 161 e 162.



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