Défice alimentar

A mentira do oásis aplicada à agricultura

Anselmo Dias

Se a de­ma­gogia se tra­du­zisse em pro­dução o nosso País seria, sem dú­vida, um país auto-su­fi­ci­ente no plano ali­mentar. É o dis­curso do «oásis» apli­cado à agri­cul­tura, agora fo­men­tado pelo Go­verno. Mas tal oásis só existe no mundo vir­tual.

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«A mi­nistra da Agri­cul­tura e Mar, As­sunção Cristas, afirmou hoje (27 de Fe­ve­reiro) que Por­tugal con­se­guiu re­duzir o dé­fice da ba­lança agro-ali­mentar em 15% no ano pas­sado o que cor­res­ponde a 500 mi­lhões de euros». Este texto foi di­vul­gado pela co­mu­ni­cação so­cial, de acordo com de­cla­ra­ções da­quela (des)go­ver­nanta oriunda do CDS-PP, numa vi­sita a um evento li­gado ao sector ali­mentar e be­bidas.

En­tre­tanto, em de­cla­ra­ções na TVI, o chefe da CAP teceu alar­gados elo­gios aos pro­gressos ha­vidos na nossa agri­cul­tura, a que se se­guiu, em oca­sião di­fe­rente, um outro co­men­tador afirmar que, em 2020, Por­tugal pas­saria a ser auto-su­fi­ci­ente na área ali­mentar.

Pos­te­ri­or­mente, sobre este mesmo as­sunto, ques­ti­o­nado pelo jornal Pú­blico, o Se­cre­tário de Es­tado do De­sen­vol­vi­mento Rural, Fran­cisco Gomes da Silva, afirmou: «Estou con­ven­cido de que é pos­sível chegar lá, quer por via do au­mento da pro­dução fí­sica, quer pelo au­mento da va­lo­ri­zação».

Es­tamos pe­rante uma ex­pres­siva ope­ração de pro­pa­ganda po­lí­tica des­mon­tada, aliás, em tempo opor­tuno, por um di­ri­gente da Con­fe­de­ração Na­ci­onal da Agri­cul­tura que, no se­gui­mento de uma reu­nião da­quela or­ga­ni­zação com uma de­le­gação do PCP re­feriu que o Go­verno «...tem feito um dis­curso do oásis apli­cado à agri­cul­tura».

De facto, esse oásis não passa de uma re­a­li­dade vir­tual.

O que existe é um sig­ni­fi­ca­tivo dé­fice ali­mentar como a se­guir se de­monstra com base nos dados ofi­ciais do INE tor­nados pú­blicos em 2 de Abril úl­timo.

Esse es­tudo está di­vi­dido em quatro partes: I – pro­dutos agrí­colas; II – pro­dutos da pesca; III – pro­dutos da in­dús­tria ali­mentar; IV – be­bidas.

Em termos de valor, re­por­tado a 2010, a nossa pro­dução no con­junto dos vá­rios sec­tores ali­men­tares atingiu os se­guintes va­lores:

  • pro­dutos agrí­colas, in­cluindo o vinho: 7194 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da pesca: 558 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da in­dús­tria ali­mentar: 10 878 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos das be­bidas, com ex­cepção do vinho: 1222 mi­lhões de euros.

Re­la­ti­va­mente a cada um destes grupos, em vir­tude da sub-pro­dução, ti­vemos de com­prar no es­tran­geiro o se­guinte:

  • pro­dutos da agri­cul­tura: 2607 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da pesca: 276 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da in­dús­tria ali­mentar: 5021 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da in­dús­tria das be­bidas: 311 mi­lhões de euros.

Uma pri­meira con­clusão: por in­su­fi­ci­ência do nosso te­cido pro­du­tivo o País teve, em 2010, de im­portar bens ali­men­tares no ex­pres­sivo valor de 8215 mi­lhões de euros, o que sig­ni­fica que cada por­tu­guês, in­cluindo bebés e idosos, des­pendeu, na­quele ano, em com­pras efec­tu­adas no es­tran­geiro, cerca de 780 euros per ca­pita, o que sig­ni­fica uma ver­da­deira he­mor­ragia de di­visas.

Um país que produz, no plano ali­mentar, bens no valor de 19 852 mi­lhões de euros e que, em con­tra­par­tida, im­porta bens no valor de 8215 mi­lhões de euros, é um país re­co­nhe­ci­da­mente de­pen­dente do es­tran­geiro o que des­mente a pro­pa­ganda do «oásis agrí­cola».

Cor­re­la­ci­o­nemos um e outro valor e che­ga­remos à con­clusão de que as im­por­ta­ções cor­res­pondem, em termos de valor, a cerca de 41% do valor da nossa pro­dução, per­cen­tagem que põe a nu a re­lação per­fei­ta­mente as­si­mé­trica entre aquilo que se produz e aquilo que somos obri­gados a com­prar lá fora.

Se há um ele­mento que ti­pi­fica a nossa de­pen­dência ali­mentar este é, se­gu­ra­mente, um deles.

Im­porta, porém, em nome da ver­dade, dizer que o nosso País é, também, um país ex­por­tador de bens ali­men­tares.

No pe­ríodo atrás re­fe­rido ex­por­támos o se­guinte:

  • pro­dutos da agri­cul­tura, in­cluindo o vinho: 1341 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da pesca: 167 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da in­dús­tria ali­mentar: 2196 mi­lhões de euros;

  • pro­dutos da in­dús­tria das be­bidas, ex­cluindo o vinho: 299 mi­lhões de euros.

Isto sig­ni­fica que es­tamos em con­di­ções de tirar uma se­gunda con­clusão e que é a se­guinte: na área em apreço, ti­vemos um dé­fice na ba­lança co­mer­cial em cerca de 4212 mi­lhões de euros, verba que dá bem a di­mensão das con­sequên­cias gra­vosas das rei­te­radas po­lí­ticas eco­nó­micas que pri­vi­le­gi­aram a ter­ce­a­ri­zação em vez do de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas nas áreas dos sec­tores pri­mário e se­cun­dário da eco­nomia.

A gra­vo­si­dade da si­tu­ação não é, con­tudo, uni­forme a todos os pro­dutos.

Há si­tu­a­ções muito di­fe­ren­ci­adas.

Com efeito, de acordo com os dados do INE, há si­tu­a­ções em que somos ex­ce­den­tá­rios, si­tu­a­ções em que es­tamos pró­ximos da auto-su­fi­ci­ência e casos em que somos bas­tante de­fi­ci­tá­rios.

Ve­jamos al­guns exem­plos:

  • Si­tu­ação de auto-su­fi­ci­ência e, em al­guns casos, ex­ce­den­tária: vinho, con­servas de peixe, cer­veja, água mi­neral na­tural, leite cru, mo­luscos.

  • Si­tu­ação pró­xima da auto-su­fi­ci­ência: azeite, ovos, hor­tí­colas, frutos frescos.

  • Si­tu­ação de grande de­pen­dência ex­terna: ce­reais, ole­a­gi­nosas, pro­dutos da pesca (pre­pa­rados, con­ge­lados, secos e sal­gados) e, so­bre­tudo, a vasta área de pro­dutos ali­men­tares trans­for­mados pela in­dús­tria.

Em­bora não haja ho­mo­ge­nei­dade em todos os sec­tores li­gados ao sector ali­mentar os dados dis­po­ní­veis per­mitem con­cluir que, face à di­fe­rença entre im­por­ta­ções e ex­por­ta­ções, as pri­o­ri­dades devem ser cen­tradas na área agrí­cola e nas in­dús­trias ali­men­tares, res­pon­sá­veis, por si só, por um dé­fice na ba­lança co­mer­cial de 4091 mi­lhões de euros.

Mas atenção: mesmo que um dia ve­nhamos, ten­den­ci­al­mente, a ser auto-su­fi­ci­entes no sector agrí­cola isso não sig­ni­fica que essa even­tual auto-su­fi­ci­ência re­solva o nosso dé­fice ali­mentar. Longe disso.

É pre­ciso ter em conta que, em termos de valor, o maior dé­fice – cerca de 2825 mi­lhões de euros – re­side na área agro-in­dus­trial o que sig­ni­fica que a exi­gência da rein­dus­tri­a­li­zação em sen­tido lato passa, também, pela in­dus­tri­a­li­zação dos pro­dutos do reino ve­getal, do reino animal e do mar.

Dé­fice ali­mentar não se re­solve
com tra­balho es­cravo

A pre­o­cu­pação a ter no «deve-e-haver» do sector ali­mentar não deve co­lidir com a obri­gação da exis­tência do tra­balho com di­reitos e do tra­balho de­vi­da­mente re­mu­ne­rado.

Sabe-se que em certos sec­tores, en­tre­tanto de­nun­ci­ados, sub­sistem formas de tra­balho es­cravo apli­cado a tra­ba­lha­dores es­tran­geiros que sa­zo­nal­mente exercem a sua ac­ti­vi­dade la­boral na ac­ti­vi­dade agrí­cola.

Re­cen­te­mente o Bispo de Beja de­nun­ciou, no âm­bito desse dis­trito, a exis­tência de «tra­balho es­cravo de asiá­ticos» de­núncia con­si­de­rada muito es­tranha – pu­dera! – pelo pre­si­dente da As­so­ci­ação de Agri­cul­tores do Baixo Alen­tejo, ir­ma­nado, pro­va­vel­mente, com o pre­si­dente da CAP que re­cen­te­mente re­jeitou li­mi­nar­mente a ac­tu­a­li­zação do sa­lário mí­nimo.

Acrescem à de­nuncia atrás re­fe­rida ou­tras re­la­tivas às con­di­ções de­su­manas im­postas a tra­ba­lha­dores do Leste eu­ropeu, ocu­pados, de sol-a-sol, na apanha da azei­tona.

Em re­lação aos tra­ba­lha­dores por­tu­gueses essa avil­tante forma de tra­balho foi abo­lida com o 25 de Abril, em­bora não deixem de estar su­jeitos a sa­lá­rios de mi­séria exem­pli­fi­cados na média sa­la­rial de 645 euros brutos apli­cados no sector agrí­cola (581 euros nas micro em­presas) e nos 788 euros no sector agro-in­dus­trial (551 euros nas micro em­presas).

Tais con­di­ções de tra­balho e tais ven­ci­mentos cons­ti­tuem uma marca do «oásis da agri­cul­tura».

«Oásis» pro­pa­gan­deado pelos go­ver­nantes e rei­te­rado pelos seus acó­litos.

Um destes, num pro­grama da TVI com a pre­sença de Ju­dite de Sousa e de Me­dina Car­reira – o já re­fe­rido pre­si­dente da CAP –, traçou sobre a agri­cul­tura por­tu­guesa um quadro mais idí­lico do que o idí­lico mi­lagre da Rainha Santa a trans­formar o pão em rosas.

Se a de­ma­gogia sig­ni­fi­casse pro­dução o nosso País seria, sem dú­vida, um país auto-su­fi­ci­ente no plano ali­mentar.

Como a de­ma­gogia não produz, o País con­tinua a com­prar lá fora aquilo que podia – e devia – pro­duzir cá dentro.

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Fonte: Abas­te­ci­mento Ali­mentar em Por­tugal, 2/​4/​2013, INE.



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