O azar de não nascer europeu

Sónia Melo

Exibe um sorriso cheio de dentes brancos, que combina com a camisa que traz vestida e contrasta com a cor da sua pele. Com quase quarenta anos, Abdul Kadir fugiu do Chade, país onde nasceu, para encontrar asilo político na Líbia. Há dois anos a guerra na Líbia obrigou-o a fugir também do país que o acolheu. Desde então Abdul é um dos refugiados com direito a um litro de água potável por dia no deserto do Saára, onde os termómetros à sombra atingem os 48 graus Celsius.

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Em condições insustentáveis vivem mais de três mil seres humanos sem direitos humanos no Campo Choucha – o maior campo de refugiados das Nações Unidas na Tunísia – no Sul do país, a apenas oito quilómetros da fronteira com a Líbia. Tomam banho em água suja, onde os militares se lavaram ou verteram óleo por despeito. Os campos de futebol estão quase sempre vazios, já que os ferimentos podem levar à morte. No hospital de Choucha, independentemente do diagnóstico médico, o tratamento é sempre o mesmo: todos os pacientes recebem uma aspirina, não importa que tipo de lesão apresentem. Perigos constantes são serpentes, escorpiões e estranhos das tendas vizinhas. Imagine-se três mil pessoas como que pregadas a cruzes no deserto, que não podem nem seguir viagem nem voltar para o país de origem.

Por ocasião do Fórum Social Mundial, que decorreu na última semana do passado mês de Março em Túnis, 50 refugiados do campo vieram à capital tunisina fazer-se ver e ouvir. Representantes de campos de refugiados e organizações a favor da liberdade de circulação aproveitaram os cinco dias do evento para chamar a atenção da comunidade internacional sobre as condições de vida em Choucha. As associações de refugiados promoveram debates e palestras sobre o assunto. Os refugiados ou erguiam cartazes com frases como «não merecemos ser esquecidos» ou procuravam jornalistas a quem narrar as condições miseráveis em que vivem. Abdul encontrou o Avante!. «Se eu pudesse voltar ao Chade, não ficaria nem mais um dia aqui», desabafa. Para Abdul viver em Choucha «é um azar muito grande». Às vezes trabalha como jornaleiro numa povoação perto do campo, a maioria das quais porém não é pago. No final do dia de labuta, volta a Choucha cansado, sem pagamento, juntamente com outros jornaleiros resignados. Abdul inspira profundamente e enche-se de coragem para admitir um sonho: «Se fosse possível, gostava de chegar à Europa».

Ele é um dos 42 milhões de harragas no mundo– definição magrebina para pessoas em fuga. Literalmente significa «harraga» uma pessoa que queima estradas atrás de si, expressão que deriva do costume de queimar os documentos de identificação.

Um crime e um pesadelo

Paquistão, Síria e Irão são os países do mundo que acolhem o maior número de refugiados, contrariamente à opinião generalizada no velho continente de que são os países europeus os mais comprometidos. Abdul quer ser uma das pessoas a quem a União Europeia concede asilo político – actualmente um milhão e meio. E oxalá não seja, com alguma sorte, um dos muitos que não sobrevivem à passagem do Mediterrâneo. 180 quilómetros separam Abdul do território italiano. Esta é a distância marítima entre a Tunísia e a Sicília. Segundo a Organização não-governamental Human Rights Watch, em 2011 morreram 1500 pessoas no mar Mediterrâneo tentando chegar ao litoral europeu. Nos últimos 20 anos foram registadas mais de 16 000 mortes sob as mesmas condições – pequenas embarcações obsoletas abarrotadas afundam sem obter auxílio num dos mares mais monitorizados/observados do mundo. Estes números porém, sublinham activistas e organizações de direitos humanos, são vagos e incorrectos, já que muitos barcos vão ao fundo sem deixar rasto. Hagen Koop, porta-voz de Welcome to Europe, organização alemã para a liberdade de circulação, que esteve presente no Fórum Social Mundial, acusa a agência europeia de controlo de fronteiras Frontex de negligenciar o direito à imigração garantido pela Declaração de Direitos das Nações Unidas de 1948. «A Frontex viola acordos internacionais, como o salvamento de vidas no mar, asilo político e protecção internacional», afirma Koop, descrevendo o mar Mediterrâneo como «um cemitério de pessoas, assassinadas por uma entidade oficial europeia».

A livre circulação e o direito à imigração constituiu um dos temas centrais do Fórum Social Mundial, que decorreu este ano pela primeira vez num país árabe. Em Túnis estiveram mais de 70 mil pessoas, convictas de que «um mundo melhor é possível». Assim reza o lema do evento bienal realizado pela primeira vez há doze anos em Porto Alegre, no Brasil. Em oposição ao Fórum Económico de Davos, na Suíça, o Fórum Social Mundial defende valores como a democracia, a justiça sócio-económica e a salvaguarda do ambiente. Esta grande mobilização pretende ser um espaço aberto de intercâmbios entre organizações, associações, sindicatos e outras organizações não governamentais hostis aos conceitos da globalização e do neoliberalismo. Entre as mais de quatro mil organizações presentes no Fórum de Tunis, esteve também a AME – Association Malienne des expulsés. A Associação Maliana de Refugiados Expulsos apoia desde há 20 anos pessoas que foram forçadas a regressar ao Mali. Porque os harragas que logram atravessar o Mediterrâneo e chegar a pisar solo europeu enfrentam dentro da fortaleza o próximo desafio – evitar a expulsão. Pior do que esperar anos num campo de refugiados, pior do que ser vítima de racismo, pior do que viver ilegalmente dentro dos muros da fortaleza europeia, é ser repatriado. Este é precisamente o pesadelo de qualquer refugiado. Aqueles que permanecem ilegalmente no continente europeu apesar da expulsão tornam-se os escravos da fortaleza, a engrenagem do motor económico europeu. Mas estas teorias pouco significam para Abdul Kadir. Ele fugiu do Chade com quase 40 anos com um objectivo: «ter um trabalho fixo, ser pago, dormir numa casa de verdade e quem sabe até um dia constituir família».



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