de Luís Filipe Costa
Singularidades do policial português
Não sou dos que consideram o romance policial, ou o de aventuras, ou de ficção científica (sendo este último, atavio nitidamente exagerado para designar o género) uma literatura menor, como advoga Umberto Eco. Os autores que cultivaram o policial, desde sir Conan Doyle, deixaram um lastro de argúcia e observação dos comportamentos humanos que a chamada grande literatura nem sempre conseguiu. O Homem que Via Passar os Comboios, de Simenon, é ainda hoje considerado um dos grandes romances psicológicos do século XX e o seu Maigret uma das grandes personagens que a literatura foi capaz, enquanto definidora de retratos humanos, como dizia Zola, de inventar. O mesmo para o Poirot, de Agatha Christie.
Quanto aos portugueses, que começam a seduzir-se pelo género em meados do século XIX arrastados pelos alvores de uma subliteratura popular, de folhetim e de cordel, a novela negra de aventuras, como então se designava, levou o nosso Camilo (também ele sempre apertado por impostos e, pior que isso, com a Justiça a atenazar-lhe o ferrolho) a iniciar-se no género ou, pelo menos, a integrar nos seus romances alguns dos seus códigos: Anátema, de 1881, Mistérios de Lisboa, de 1865, e O Livro Negro do Padre Dinis, de 1855.
Esta mesma atracção – se bem que aqui não seriam as urgências de escreviver que levaram os seus autores, em despique de génios, a enveredar pelo thriller – convocaria Eça de Queirós e Ramalho Ortigão para a escrita de O Mistério da Estrada de Sintra, um dos mais soberbos livros de género, a cujo policial se entrecruzaria, em substantivo linimento, o fantástico; policial entendido como um jogo perverso, só possível pela capacidade inventiva dos autores em presença.
Autores de prestígio, e vindos até de outras áreas da estética e do pensamento literário, não desdenharam experimentar o policial: Fernando Namora, com esse magnífico romance que é O Rio Triste, que David Mourão-Ferreira considerou o mais acabado e formalmente conseguido romance de género; Roussado Pinto (o Ross Pin), Orlando Neves e Diniz Machado, este último com policiais herdados do cinema negro americano e de autores como Hammett e Raymond Chandler; Maria Estela Guedes e, já nos anos 1980, o romance Adeus, Princesa, de Clara Pinto Correia. Os finais dos anos 1970 trouxeram-nos ainda um romance notável, que podemos, sem esforço, incluir no género: Square Tolstoi, de Nuno Bragança. Mas o grande período criador do policial tuga inicia-se nos anos 80. Nessa década aparecem livros de grande ousadia formal, alguns dos quais ainda hoje podemos considerar dos mais interessantes e lidos – e não só, posto que o cinema igualmente os transformou numa outra linguagem quiçá mais acessível ao grande público: Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal e Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires. Igualmente, a novela Cinco Dias, Cinco Noites, de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, não se afasta dos códigos presentes em muitos textos do género.
Mas o policial estruturado e autónomo, eivado da influência anglo-saxónica (mas fortemente inspirado em Boris Vian, no humor, no cinismo, no contínuo tropeçar no non sense), começa com a colecção Caminho Policial, pela qual passam autores como Justino Pamplona, Luis Rodrigues, Henrique Nicolau, Ana Teresa Pereira e Artur Cortez (este um pseudónimo de Modesto Navarro, que o autor revelaria, já com nome próprio, no romance O Deputado). Francisco José Viegas, próximo do universo formal do catalão Montalban, venceu, com um policial, Longe de Manaus, um grande prémio da APE o mesmo acontecendo a uma das escritoras mais inovadoras da nossa actual ficção: Ana Teresa Pereira. No universo do policial desbragado e pícaro, que torna o género singular entre nós, devemos incluir Miguel Barbosa e o seu Rusty Brow, José Prata, com um livro pleno de inventiva e de humor desarmante, Os Coxos Dançam Sozinhos, e esse criativo de língua e de ambientes, de imaginação desabrida e delirante, torrencial na subversão do género: Que Puta de Vida, de Luís Lopes, livro a vários títulos brilhante, dos mais originais e soberbos romances policiais portugueses publicados nas últimas décadas.
A estes devo acrescentar um livro raro, raro pela argúcia, pela sensibilidade, pela destreza descritiva, pela inventiva abordagem do real, pelo novo e enxuto da linguagem, pela reinvenção vocabular e metafórica – Agora e Na Hora da Sua Morte, de Luís Filipe Costa. Publicado em 1988, pela Caminho, só em 2008 conheceria uma 2ª. edição. Vinte anos volvidos, a sedução e frescura permanecem e, sabemo-lo hoje, o policial indígena raramente alcançou este patamar de causticidade, de humor, do rumor manso e nostálgico que este livro, subrepticiamente, transporta. O crimezinho, o tal que dá tom, substância à coisa, apanha-nos logo na primeira página, com facadas, sangue e polícias como mandam as normas. Mas o autor envia as normas para o recreio e deixa-nos pendurados uma caterva de páginas e esse tempo, o tempo literário que se divide em três dias – sexta, sábado, domingo – é gasto a percorrer a Lisboa nocturna dos finais dos anos 1980; a trazer-nos retratos deslassados, cruéis, memórias, desencantos, restos de um tempo de júbilo e retraimento, as rugas dessa esquerda festiva (ou caviar?) que o autor já cronicara brilhantemente no livro Uma Borboleta na Gaiola. Tempo perdido? Antes pelo contrário: a escrita de Luís Filipe Costa percorre esse esquivo corpo, os lanhos de uma revolução a derruir, do regresso lento à apagada e vil tristeza que parece tolher-nos num fadário de concêntricos ciclos. E tudo isto contado como quem respira ou bebe um uísque de cambalacho num bar de alterne; como um guião de cinema que apenas apontasse ao realizador a essência, sem a gravidade de quem tem na máquina de escrever a redenção de todas as malfeitorias que nos lixam a vida. Deixar sinais desses «amigos de Alex» que o tempo, a vidinha, a cidade já tragaram e andar, partir para outra, que há tanta urgência em dizer o real que nos morde às canelas, que outro real mais avassalador, como as ondas, nos assalta de emboscada: a memória é feita de farrapos esparsos no vento e o futuro é agora.
Perdemos apenas uma revolução ou envelhecemos? Deixámos de ser ingénuos e saímos das paixões mais sós e derrotados, a preparar nos outros o nosso próprio suicídio? Amargo, este livro? Nem tanto: a doer-nos, dado que neste humor cáustico, nestes retratos da tribo urbana que sonhou, nas mesas do Vává, do Suprema, do Monte Carlo, salvar o mundo e desse desígnio perdeu o rumo, as ilusões e o futuro, nos reconhecemos um pouco – sem amargura nem êxtase.
E, no entanto, saímos deste livro acreditando com muita convicção que ainda podemos, devemos ousar e, como nos idos de 1960, exigir realisticamente o impossível.