O último recurso

Correia da Fonseca

RTP1, «Sexta às 9»: uma reportagem informa-nos sobre o que designa por «o lado mais negro da crise». E explica-no-lo, naturalmente, narrando o caso de uma mulher que num supermercado roubou leite e pão para dar ao filho com fome. Acrescenta a reportagem que o episódio foi de uma pungência tão óbvia que o polícia chamado para tomar conta da ocorrência, como se diz na linguagem oficial, acabou por pagar do seu bolso o valor do furto. E mais ficámos a saber: que já por mais de uma vez aconteceu que agentes da PSP, perante situações idênticas, optaram por pagar o valor de pequenos roubos de bens alimentares porque, como bem se entende, polícias são gente do povo, também eles roubados, humilhados e oprimidos pelos que se instalaram no poder graças a uma campanha eleitoral tecida com mentiras, e não membros do Governo, seus cúmplices ou beneficiários da pilhagem ilegítima que está em curso e assola o País de lés a lés. Assim, «o lado mais negro da crise» será a fome, sobretudo a fome das crianças que já se tornou um lugar comum do quotidiano português, ou talvez a pressão para o roubo como única «solução» para situações de desespero absoluto, ou talvez ainda a sinistra conjunção entre a fome cada vez mais generalizada e os cada vez mais frequentes casos de roubo. Roubo de pequenas quantidades de alguns produtos alimentares nas situações de facto mais perdoáveis (de onde os generosos pagamentos feitos por homens da PSP), roubos que poderão alargar-se a outros alvos como último e desesperado recurso porque, como bem sabe quem não for do Governo ou dos seus arredores, há outras necessidades básicas para além da alimentação: tecto, medicamentos, mensalidades de lares onde pais velhos e doentes esperam a libertação pela morte. Tudo coisas que o povo conhece mas que são ignoradas pelo doutor Gaspar, pelo doutor Passos e, é claro, pelos que se abrigam sob o pseudónimo já tornado infame de «mercados».

«Cumprir ordens»

Contra esse conjunto de criaturas agrupadas em grupos (em língua inglesa diz-se «gangs», se o meu dicionário não me engana) emergiu, como era inevitável, uma torrente de indignações que dia após dia se avoluma, reforçada por novas agressões, por novos crimes e, por consequência, novos horrores e desesperos. Dizem os fautores da opressão, os semeadores das fomes e de todas as suas directas consequências, que estão obrigados a proceder como procedem porque cumprem ordens vindas de longe e obedecem a compromissos que tomaram. Não se apercebem, pelos vistos, de que a alegação de «cumprir ordens», ou dessa outra forma de dizer o mesmo que é a alegação de obediência a compromissos conducentes à violação de direitos humanos, tem uma ascendência histórica que remete a nossa memória para o nazismo e para um tribunal que foi sediado em Nuremberga. Também ali e noutros tribunais com funções idênticas aconteceu que muitos alegaram não terem feito mais do que «cumprir ordens» em obediência a compromissos que haviam assumido. É certo que entre os crimes então julgados e os que estão a ser cometidos no nosso País há enormes diferenças de escala e dimensão, mas não é menos certo que os crimes perpetrados contra uma população quase inteira, sejam quais forem os pretextos e os álibis invocados, têm radicações comuns que aliás as ciências políticas e económicas são capazes de identificar. Por isso se revelará frágil e mesmo inútil a eventual invocação de uma legalidade estritamente formal que, de resto, todos os opressores se dispõem a transgredir sempre que tanto lhes convém, como se sabe e se vê. E a referida semelhança até poderia fazer reflectir os que desencadearam contra o povo uma espécie de guerra «branca», isto é, não sanguinolenta, que afinal não passa de uma forma brutal da luta de classes: poderia fazê-los reflectir se não estivessem irremediavelmente mergulhados num caldo sinistro de interesses, vaidades pessoais e intoxicação ideológica. Isto é, se ainda fossem capazes de reflexão serena, informada e honesta, condição miraculosa que manifestamente não é do minimundo em que se movem.



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