Dignidade!

João Frazão (Membro da Comissão Política do PCP)

«Quando se perde os bens perde-se muito,
quando se perde a coragem perde-se mais,
mas quando se perde a dignidade perde-se tudo!
»

 

Contaram-me estes dias uma história de dignidade que não resisto a trazer aqui. Maria (chamemos-lhe assim, que esta não é apenas a história desta mulher) está desempregada. Recebe cerca de 250 euros de Subsídio Social de Desemprego, o «subsequente», como é designado por milhares de homens e mulheres que têm nesta prestação social o único meio de sobrevivência, depois de terem já esgotado o período legal do Subsídio de Desemprego, sem terem conseguido encontrar qualquer emprego.

A dignidade é um bem que quando se perde, perde-se tudo

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Maria tem a seu cargo uma filha menor, estudante. Por esta, a Segurança Social atribui-lhe uma outra prestação, o Rendimento Social de Inserção (RSI) no extraordinário valor de 24 euros. Maria, tal como todos os desempregados que recebem prestações, está obrigada a apresentações quinzenais num qualquer Centro de Emprego, ou na Junta de Freguesia. E está obrigada a participar nos cursos que o Centro de Emprego indicar.

Maria começou agora a participar numa acção de formação cujo objectivo é dar as ferramentas aos formandos para fazerem poupança no lar. Desta formação fazem parte, entre outras pérolas, um módulo (é assim que agora se diz) para aproveitamento de sobras de comida.

A questão que, neste ponto, se coloca é «por onde começar»?

Se pelo facto de, dias antes de ter sido convocada para esta «formação», Maria ter sido notificada de um corte de seis por cento quer no valor do Subsídio Social de Desemprego (essa fortuna de duas centenas e meia de euros) quer no valor do RSI (essa mordomia escandalosa de duas dezenas e meia de euros), roubo que, de resto, vai exigir efectivamente novas poupanças. Se pela evidência de que, numa casa onde entrem 274 euros por mês, dificilmente haverá sobras de comida que possam ser reaproveitadas e, havendo, apenas estariam a ensinar a missa ao vigário de quem faz das tripas coração para garantir, todos os dias, algo que comer. Ou talvez pela resposta que Maria estava a preparar para o trabalho de casa da semana passada – cada formando teria que fazer a lista de compras. Maria, contaram-me, preparava-se para responder nos seguintes termos: a uma filha casada e com emprego iria pedir arroz, massa, ovos e salsichas. Na lista de uns amigos antigos iria colocar batatas, óleo e margarina. Na de uns familiares próximos sabe que pode pôr carne e peixe que dê para 15 dias.

Na lista do supermercado é que não pode escrever nada! Depois de pagar a renda, a água, a luz, os medicamentos regulares, Maria fica sem dinheiro. Já ficava antes do tal corte de seis por cento com que o Governo decidiu confirmar que os sacrifícios são para todos, que é como quem diz, para os que menos têm.

O faz de conta 

Maria, nessa sessão de faz de conta com que o Instituto do Emprego e da Formação Profissional entretém desempregados para quem não tem qualquer outra solução, vai voltar a afirmar que ali está porque o governo (não este, mas o anterior que, sendo do PS, navegava nas mesmas águas da política contra quem trabalha) decidiu que, a quem perdeu o emprego, a quem o capital na voragem do lucro imediato roubou o sustento – e, com ele, quantos sonhos! –, deve ser atribuído um estatuto de criminoso com termo de identidade e residência, em vez de se garantir o emprego que é direito protegido pela Constituição e que estes se devem sentir como pedintes de um direito que é seu, conquistado a pulso.

Com a dignidade com que se destacou na contribuição para o êxito da Marcha contra o Desemprego e com que, nestes dias, prepara a Marcha contra o Empobrecimento, Maria dirá que a sua lista de compras é um papel em branco porque a política de direita assim quer. E que ela, e todas as marias do País, desde que tenham um emprego com direitos e um salário digno, saberão exactamente o que comprar, e onde comprar, para que não falte pão na mesa dos seus filhos.

No nosso País, onde o desemprego atinge a expressão dramática dos quase 20 por cento oficiais e dos 25 por cento reais, e onde, dos mais de um milhão e trezentos mil desempregados, apenas uma pequena parte (pouco mais de 350 mil) recebe alguma prestação social, a política oficial, a política de direita a que o PS deu forma de «memorando de entendimento» com a troika estrangeira e que o PSD e CDS todos os dias reconfirmam na prática governativa, inclui, no seu cardápio de malfeitorias, pisar na dignidade de centenas de milhares de seres humanos a quem tratam como criminosos, incapazes e pedintes.

Mas no nosso País, há muitas marias, a quem Abril devolveu a dignidade que o fascismo também calcava, que sabem que ela é um bem que quando se perde, perde-se tudo!

E que não estão disponíveis para a perder e que, com coragem, vão à luta, todos os dias, para a defender!

 



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