Herr Ratzinger passa à reforma

Correia da Fonseca

Foi a grande, a espectacular notícia que dominou os serviços informativos da televisão e seus anexos, pelo que não pode esquivar-se-lhe quem exactamente se ocupa a abordar, melhor ou pior, o que vai surgindo nos ecrãs dos nossos televisores, suas causas e seus efeitos: Joseph Ratzinger, que a nossa memória colectiva quase diria ter sido eleito há poucos dias para ocupar a chamada cadeira de S. Pedro (onde, de facto, S. Pedro nunca teve oportunidade de se sentar, coitado), decidiu que oito anos já lhe bastavam e escolheu passar à situação de efectiva reforma. Como aliás era seu direito, sublinhe-se: octogenário, doente, consabidamente enredado em escândalos e intrigas palacianas em que decerto não seria comparsa mas de que não deixava de ser responsável dada a sua condição de chefe supremo, percebe-se facilmente que já não dispunha de forças físicas e psicológicas para cumprir inteiramente as tarefas que lhe cabiam. Para mais, e esse terá sido um factor nada secundário mas singularmente esquecido na torrente de comentários que a sua decisão motivou, parece claro que o Espírito Santo que esteve na raiz da sua eleição em 2005 lhe faltou agora com o divino apoio que, seguramente, lhe teria garantido as forças necessárias ao prosseguimento do seu espinhoso trabalho. Nada a objectar: bem se sabe que os desígnios superiores são insondáveis e de acerto garantido pela qualidade incomparável e inquestionável da sua própria fonte, mas é sabido que a relativa brevidade do mandato de Joseph Ratzinger foi um dos motivos da surpresa que se abateu agora sobre a enormíssima comunidade católica no mundo. Resta a sabedoria popular que nos assegura ser a escrita divina sempre direita, mesmo que desenhada sobre linhas tortas, o que é razão para generalizada tranquilidade.

O senhor que se segue

É claro que a decisão de Joseph Ratzinger se integra tão completamente na condição humana que dispensa justificações: o Papa decidiu como qualquer outro homem poderia ter feito, não apenas em plena legitimidade mas também em completa normalidade. Por isso mesmo foram tão desproporcionadas as palavras de enorme admiração e louvor com que foi acolhida a sua decisão de passar a uma efectiva reforma, como qualquer outro homem: falou-se de grandeza, de generosidade, de prova de virtude muito acima do que é comum, a propósito de uma opção que afinal é a de milhões de homens e mulheres por todo o mundo sem que nesses casos suscitem quaisquer palavras de quase êxtase. Poder-se-á dizer até que esta atitude de Joseph Ratzinger é simpática na medida em que atesta a sua comum condição humana afinal vulgar, a fragilidade que o banaliza, o situa num lugar idêntico ao de muitos outros. Felizmente para ele e ainda bem, a sua passagem a uma situação de reforma que será confortável e não terá o menor vestígio de especial martírio para lá dos efeitos de facto martirizantes que a velhice, a doença e a inevitável agonia implicam para qualquer ser humano, confere-lhe uma imagem de criatura como qualquer outra, o que sem dúvida é simpático mas não justifica os encómios superlativos produzidos na televisão e decerto fora dela por personalidades de quem não será de mais esperar bom senso mínimo, apego à óbvia verdade e recusa de efectivas tentativas de condicionar a opinião pública, sejam ou não devotadamente cristãs. O amor à verdade, que muitas vezes implica contenção e sempre exige recusa de acções mediáticas porventura sem princípios mas com fins, é incompatível com exageros que podem ser inconciliáveis com uma prática verdadeiramente cristã no quotidiano. Resta, é claro, aguardar a sequência imediata desta passagem à reforma de Joseph Ratzinger, Papa, e aí, sim, há lugar para reflexões, projectos, e manifestação de desejos. Designadamente e sobretudo que o sucessor de Ratzinger seja um homem empenhado na defesa de todas as formas de Paz e não, como o antecessor de Bento XVI, um homem de guerra a militar muito activamente contra os que, por caminhos sempre difíceis e semeados de armadilhas, se esforçam por um futuro de Paz e Justiça para todos. De Paz e Justiça, isto é, verdadeiramente cristão.



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