Querido Ulrich

Gisela da Conceição

Não sei como hei-de ex­primir-te a minha gra­tidão.

Es­tavas tu linda Inês posta em sos­sego… Nada disto. Não há li­rismo para nin­guém. Re­to­mando: es­tava eu, mais uma vez, dei­tando contas à vida, quando sur­diste na te­le­visão e, be­né­volo, te ins­ta­laste em minha casa, traços se­renos, fala mansa, pele trans­lú­cida («come muito pei­xinho», diria, nos­tál­gica, a minha tia Luísa, ca­sada com o tio Fran­cisco, cabo da guarda fiscal e cam­peão re­gi­onal de damas.) Ima­gina tu, que­rido Ul­rich: se­gundos antes, es­ta­be­le­cera eu, em de­fi­ni­tivo, ator­doada, o meu plano de so­bre­vi­vência. A saber: para pagar a renda de casa e as contas, teria de ali­mentar-me, todo o ano, com café de ce­vada e pão com Bécel. (Não sei se sabes, que­rido Ul­rich, que uma sopa sai cara. A hor­ta­liça está pela hora da morte.) Não tinha, por­tanto, que ir aos mer­cados. A pa­daria e a mer­ce­aria da es­quina bas­tavam-me. Des­tro­çada com a pers­pec­tiva, refiz o or­ça­mento e con­segui li­bertar al­guns euros e não sei quantos cên­timos que me per­mi­ti­riam comer um bolo com passas (olá, Miss Brill! 1), um do­mingo por mês, ao balcão do qui­osque do se­nhor Car­valho. Não vou aguentar, pensei. Não vou aguentar e não posso ado­ecer.

Foi então que, que­rido, que­rido Ul­rich, ilu­mi­nado Ul­rich, com pro­di­giosa ins­pi­ração, apre­sen­taste um novo pa­ra­digma de re­sis­tência: os sem-abrigo. Os sem-abrigo so­bre­vivem, re­sistem, aguentam. Por que não ha­vemos nós de aguentar? Cris­ta­lino! Senti uma pon­tinha de in­veja: como é que eu, toda a vida dada a tra­balho in­te­lec­tual, jul­gando-me ar­guta e pers­picaz, tinha pas­sado ao lado de tão des­lum­brante e clara evi­dência? Meti a viola no saco, que­rido Ul­rich, pe­rante a tua sábia lu­cidez.

Por que não coses essa boca? Por que não te li­mitas, mer­ce­eiro de águas turvas, a fazer contas de somar, em papel qua­dri­cu­lado, com o lápis atrás da orelha? Já nos en­xo­va­lharam que baste e estou a in­cluir os sem-abrigo. Em nome de quê, um qual­quer ban­queiro tem tempo de an­tena para ames­qui­nhar mi­lhões de por­tu­gueses? Em nome de quê, um tal Ul­rich tem o des­plante ino­mi­nável de dar li­ções de mal viver? Quem res­ponde por isto? In­sisto: quem res­ponde por isto?

Ul­rich, homem, faz-te à vida. Some-te na pai­sagem. Agarra num ca­jado e, em jejum e de san­dá­lias, mete-te à es­trada. Banha-te nas águas ge­ladas do Ganges, na Índia ou no Ban­gla­desh, me­dita à sombra de um si­có­moro, vai até ao Muro das La­men­ta­ções, e tudo, e tudo, e tudo. Mas nada, nada mesmo, nada te re­dime da vi­leza que fez san­grar os ou­vidos de mi­lhões de por­tu­gueses, tentou me­no­rizar a sua in­te­li­gência, cravou mais uma seta na sua dig­ni­dade in­di­vi­dual e co­lec­tiva.

Ul­rich, si­lêncio, por favor.
Adeus.

Miss Brill é a per­so­nagem pun­gente de um conto, com o mesmo nome, da es­cri­tora ne­o­ze­lan­desa Kathe­rine Mans­field (1888-1923). Aos do­mingos, de­pois de ouvir a banda no co­reto do jardim, Miss Brill re­gres­sava a casa, só, e, no ca­minho, com­prava um bolo com passas, seu único luxo.



Mais artigos de: Argumentos

Herr Ratzinger passa à reforma

Foi a grande, a espectacular notícia que dominou os serviços informativos da televisão e seus anexos, pelo que não pode esquivar-se-lhe quem exactamente se ocupa a abordar, melhor ou pior, o que vai surgindo nos ecrãs dos nossos televisores, suas causas e seus efeitos: Joseph Ratzinger,...

Luta pela Soberania e pela Constituição

«Que posso eu fazer? Sim: que posso eu fazer?Vê-se a gente livre dos franceses, e zás!, cai na mão dos ingleses!E agora? Se acabamos com os ingleses ficamos na mão dos reis do Rossio...Entre os três o diabo que escolha...». O texto acima, envolvendo uma troika formada por...

O caos na Terra e a paz no Céu

«Não é de hoje. Um dos segredos da sobrevivência milenar da Igreja Católica é saber estar bem com o poder. E Portugal sabe até onde se pode ir com esta convivência. E como a doutrina social da Igreja se adapta facilmente à sua hierarquia (que não é...