Os fogos fátuos da paixão
Antes de me debruçar sobre a análise deste magnífico livro que é Os Labores de Adão e os Artifícios de Eva, de Hugo Santos, quero deixar aqui algumas notas sobre os caminhos da nossa actual literatura.
Socorro-me de Alberto Manguel para que me não sinta isolado nesta abordagem e a prosa contenha algum lastro. Convém, quando fazemos frente aos poderosos, tirar nomes sonantes da cartola para que a denúncia se não perca e seja substantiva; refiro-me, naturalmente, aos grandes grupos económicos que descobriram na literatura ligth o maná, fonte de esbulho e de empobrecimento do intelecto indígena; cínica forma de manter as massas a recato, imaginários torpes, intoxicados q.b., com montanhas de lixo em forma de livro espalhadas pelas catedrais do consumo.
Disse Manguel1, quando interrogado sobre a escassez de leitores (de leitores atentos, críticos e informados, atente-se): «O que está a perder terreno é a inteligência. Estamos a tornar-nos mais estúpidos porque vivemos numa sociedade na qual temos de ser consumidores para que essa sociedade sobreviva. E para se ser consumidor, é preciso ser estúpido, porque uma pessoa inteligente nunca gastaria 300 euros num par de calças de ganga rasgadas.
Essa educação da estupidez faz-se desde muito cedo, desde o jardim de infância. É preciso um esforço muito grande para diluir a inteligência das crianças, mas estamos a fazê-lo muito bem. Estamos a conseguir destruir aos poucos os sistemas educativos, éticos e morais, o valor do acto intelectual.» Hugo Santos, que foi professor, saberá, tanto quanto Alberto Manguel, destas perversões neoliberais. Mas Manguel põe o dedo na ferida: convém ao poder criar uma legião de submissos úteis, que se não interroguem, que não questionem, que obedeçam sem chatear. A literatura de supermercado serve esse desígnio, com a televisão, os modelos formatados da produção cinematográfica de hollywood, os jogos virtuais, etc., a criarem o cerco. E a escola, as universidades que estes senhores almejam vão, lentamente, destruindo os imaginários, a massa crítica, reduzindo a inteligência e a capacidade dedutiva. Voltemos a Manguel, meu bordão de atalaia: «A escola, a universidade, deveriam ser o lugar onde a imaginação tem campo livre, onde se aprende a pensar, a reflectir, sem qualquer meta. Mas isso é algo que estamos a eliminar em todo o mundo. Estamos a transformar os centros de ensino em centros de treino. Somos a primeira sociedade que entrega os seus filhos à escravidão, sem qualquer sentimento de culpa. Nesses centros de aprendizagem, estamos a criar seres humanos que não confiam nas suas próprias capacidades e que começam a acreditar que o seu único objectivo na vida é arranjar trabalho para conseguir sobreviver até chegar à reforma – mas até isso já lhes estão a tirar.» Fiquemo-nos por aqui.
Um livro como Os Labores de Adão & os Artifícios de Eva, posiciona-se ao arrepio dos desígnios das eminências pardas que, no segredo dos gabinetes – e sem entrar em teorias da conspiração – vão congeminando esse tenebroso futuro que nem George Orwel conseguiu antever. É um livro sensível e inteligente; regresso do autor ao seu reconhecível território semântico. Depois desse pícaro notável que é Campoamor, Hugo Santos dá-nos, neste livro, a sua exacta respiração, o verbo em delírio de ressonâncias líricas, a metáfora carregada de sinais interiores, de vivências sensitivas, de extrema sensualidade, esse húmus da pele que a sua poesia largamente expressa.
A escrita de Hugo Santos é ibérica, excessiva, ressonante, sinfónica nesse torrencial da palavra, nessa matriz da língua que em seus esconsos reproduz o fulgor, o absurdo da magia tocante e arrebatada. E o leitor vai nesse caudal, percorre essa ilimitada voragem da língua a renovar-se, a descobrir-se perplexa e jubilosa.
Que fazer desse cadinho de nós que, apesar dos pesares e da vertigem de estar vivo e atento ao pulsar dos dias, ainda nos acossa e traz à ilharga a porosidade mais extensa das emoções, das vibrações que nos habitam? As paixões são imanências, reflexos baços, vento apenas sobre um rosto nu? Ou, ao contrário, os outros contam, estão connosco na forma como nos tocam, nos modos como deixamos que se insinuem, se instalem nessa outra pele que nos é a um tempo estranha mas que sabemos, na solidão que as paixões arrostam, ser a nossa? Paixão: esse indeterminado momento da conjunção dos absolutos, essa «loucura portátil» de que fala Vila-Matas; a pele da sombra que não nos abandona, que se nos cola porque bagagem de afectos, lume e cardos. Só no outro, com o outro, nos reclamamos, nos sabemos humanos – eis Adorno a ler-nos as linhas dos sentidos que dia a dia escavamos com os nossos próprios ossos, sangue e lava – que sabemos nós desses linimentos, desses metafísicos «umbrais do desejo»?
Este livro de Hugo Santos é, na desmesura da sua evocação, no sensitivo do seu corpo orgânico, um objecto literário incomum. Um texto feito de fragmentos, a duas vozes – macho e fêmea – em seus contrastes, seus jogos, seus abismos de confronto e sedução. De contos será, para arrumarmos a coisa, mas inovador na forma e nos processos narrativos – isso nos basta.
O olhar de Hugo Santos perante o fenómeno emotivo – essa paisagem de lava da paixão –, do corpo como centro de prazer e introspecção do ser, vagueia desperto e impressivo, mas ágil, sem rasurar o trágico da insolvência amorosa. Nada de mais.
O poeta percorre a memória dos dias, esses lanhos de assombro e de prazer, seu âmago de cinzas, sem recorrência aos arquétipos da moral judaico-cristã que castrou o nosso romantismo. A culpa, como a definiu Camus, não existe em si mesma, não se consubstancia nos objectos da paixão, é um derivativo do tempo/espaço que habitamos, exterior, portanto, aos amantes e à sua condição. A paixão é uma forma extrema do efémero e só possível de apreensão no instante breve do encontro/confronto entre dois seres livres e libertos.
Ao contrário de Daniel Filipe e do seu amor acossado pela vigília dos algozes, este Os Labores de Adão & os Artifícios de Eva, percorre um tempo de liberdade de hábitos, de descobertas do corpo e de seus êxtases, do prazer a doer nas fibras. Sem esbirros nas sombras. É a crueza da nudez – sintáctica, em sua explosão emotiva – sem tibieza, sem arroubos morais, o que este livro nos traz. Fala que, corajosa, se ergue, se expõe e se confessa. E, com ela, desacostumado de tanta serena liberdade expositiva, em seus bíblicos acervos, Eva e Adão, serpente e tricot, paleio e sedução, o leitor se deixa – vox e júbilo conjugados – arrebatar.
1Jornal Público, suplemento Ípsilon, 5.7.2010
Os Labores de Adão & os Artifícios de Eva, de Hugo Santos
Colecção: O Chão da Palavra – Nova Vega/2010