Membro da Comissão Política do Comité Central
O regime democrático – a democracia política
Há mais de três décadas e meia que a política de direita ataca profunda e sistematicamente o regime democrático que conquistámos com a revolução de Abril. Uma revolução que tomou a opção de construir um regime democrático em que a democracia política – com a igualdade de direitos entre os cidadãos, a separação dos poderes e dos órgãos de soberania, a valorização do papel dos partidos políticos, as eleições, o Poder Local democrático e a autonomia regional – não dispensa, antes exige, a democracia económica, social e cultural.
Os sucessivos governos PS, PSD e CDS têm conduzido esta ofensiva, com mais de trinta anos, de forma a atacar direitos fundamentais, visando recompor o domínio do capital monopolista em todas as esferas da sociedade.
A alternância que praticam entre si é isso mesmo: mudar os protagonistas para procurar garantir que a política não muda. A alternância sem alternativa de política, que tem protegido os interesses dos grupos económicos nacionais e internacionais, incutida por todas as formas pelos meios de condicionamento político e ideológico e pelos principais meios de comunicação, foi nestes anos um instrumento da profunda degradação do regime democrático. Tem sido a forma de procurar impedir que o povo português escolha outros caminhos e, por isso, é uma grave limitação democrática.
Sempre que necessário, PSD e CDS apoiaram os governos e as maiorias do PS, tal como o PS apoiou os governos e as maiorias do PSD e do CDS. O PS assinou o pacto de agressão; o PSD e o CDS subscreveram-no. O PSD e o CDS aplicam-no no Governo e o PS subscreve as decisões fundamentais.
E agora mesmo se procura criar a ideia de que, como o PS não tem nas questões fundamentais uma política alternativa à do Governo PSD/CDS, não haveria alternativa ao desastroso caminho em curso. Nada de mais falso: há alternativa ao caminho de destruição nacional, com as propostas e o projecto que defendemos e com o reforço do PCP.
O regime democrático, estabelecido pela Constituição de Abril, incluiu disposições no plano económico que têm sido profundamente desfiguradas, como seja a subordinação do poder económico ao poder político. Quando, como hoje acontece, o poder político e governativo é um fiel executor das orientações do poder económico, é o próprio regime democrático que está em causa. Quando a riqueza criada é distribuída de uma forma cada vez mais desigual, através do aumento da exploração, dos baixos salários e reformas, está de facto em causa a democracia económica, indispensável a um regime verdadeiramente democrático.
No plano social, é gravíssima a restrição de direitos laborais – afastando progressivamente a proteção constitucional acrescida, que defende o trabalhador como parte mais frágil da relação laboral. O mesmo se passa com importantes direitos sociais, como o acesso à Saúde e à Educação.
É também evidente que o brutal ataque à Cultura, quer no acesso à fruição, quer no apoio à criação, constitui uma orientação do capital e dos governos que o servem e contribui igualmente para o empobrecimento do regime democrático.
Os direitos económicos, sociais e culturais, sendo parte integrante do regime democrático, são também essenciais para que a democracia política se consagre e não se reduza a uma mera proclamação formal.
Os elementos da democracia económica, social e cultural não existem sem a democracia política; mas também não há democracia política verdadeira e plena, sem que haja democracia económica, social e cultural.
E, se é certo que esta ofensiva é já longa, é também evidente que estamos agora perante uma nova e perigosa fase. Com o pacto de agressão e a chamada «refundação» do Estado, o que se pretende é dar mais um enorme salto na destruição da democracia económica, social, cultural e política e, assim, no regime democrático.
Querem fazê-lo com ou sem a revisão formal da Constituição, mas sempre contra o seu conteúdo. Falam em inevitabilidades, em necessidade de optar entre mais impostos, sobre os trabalhadores e a população em geral, e a manutenção dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, quando na realidade o que estão a fazer é aumentar os impostos e destruir, ao mesmo tempo, os serviços públicos.
É a mesma política que ataca o Poder Local democrático, que quer esmagar e tutelar os municípios e extinguir as freguesias. A mesma que, por mão ora do PS, ora do PSD, procura alterar as leis eleitorais de forma a garantir, mesmo sem os votos necessários, o poder total nos municípios e na Assembleia da República.
Hoje, um dos aspectos que mais deteriora o regime democrático é a amputação da soberania nacional, o condicionamento das opções do País, designadamente no quadro da integração capitalista da União Europeia. Quando PS, PSD e CDS aprovam sucessivos tratados europeus e, agora, o chamado Tratado Orçamental, entregando mais e mais poder às instâncias da União Europeia e aos grupos económicos que a comandam, o que estão a fazer é a desfigurar o regime democrático e a desrespeitar a Constituição. Quando se afasta a decisão do País, afasta-se a democracia do povo.
Na actual situação, enfrentamos uma clara contradição entre, por um lado, as alterações ao sistema socioeconómico – no sentido do domínio do capital monopolista e dos seus grupos económicos, condicionando o regime democrático, incluindo a democracia política – e, por outro lado, a permanência na Constituição de elementos profundamente democráticos e progressistas, capazes de incorporar a política patriótica e de esquerda por que lutamos.
Muitos perguntam hoje se estamos ainda no quadro de um regime democrático, tal como o entendemos. É verdade que estamos hoje perante um regime democrático amputado na sua dimensão económica, social e cultural e ao mesmo tempo politicamente empobrecido.
Da mesma forma, muitos se questionam sobre a validade actual da nossa Constituição, devido às sucessivas desfigurações que aconteceram com as várias revisões constitucionais. Mas apesar destas sucessivas desfigurações, a Constituição que resultou da revolução de Abril constitui um efectivo obstáculo ao avanço da política de direita e uma base de apoio inequívoco à ruptura, para a política patriótica e de esquerda por que o nosso Partido luta.
Nem o regime democrático está extinto, nem a Constituição está revogada. E a prova disso é que o grande capital e os partidos e forças que o apoiam continuam a tê-los como um alvo prioritário.
Do que precisamos é de exercer os direitos, como primeira forma de os defender; é de valorizar o conteúdo da Constituição; é de lutar por mais direitos, por uma economia ao serviço do povo e do País, pela soberania nacional, por um futuro melhor para os portugueses.
Do que precisamos é, não de desvalorizar a Constituição e o regime democrático, facilitando objetivamente o caminho aos que a querem destruir, mas sim de valorizar os seus conteúdos progressistas, o seu projecto de sociedade, que inclui elementos fundamentais da democracia avançada, de defender os valores de Abril nela inscritos e que queremos inscrever no futuro de Portugal.
Intervenção proferida no XIX Congresso do PCP, realizado em Almada de 30 de Novembro a 2 de Dezembro.