A meia voz
Pela televisão e não só, chegou-nos a notícia de que o Estado Palestiniano havia sido admitido na ONU com o estatuto de observador em resultado de uma esmagadora votação favorável a uma proposta nesse sentido. Mais: ficámos também a saber que Portugal havia apoiado a proposta, o que naturalmente nos honra por ser presumível que essa atitude teve a ver não apenas com estratégias e interesses da área da política internacional mas também, se não sobretudo, com um sentido de justiça e de solidariedade com um povo há décadas oprimido e espoliado de territórios que lhe pertencem à luz de acordos há muito firmados. Tudo bem. Depois disso, soubemos também que Israel, governado por um executivo de direita e extrema-direita, retaliara desencadeando a construção de novos colonatos judaicos em territórios alheios, assim infringindo sucessivas resoluções da ONU e agravando as já muitas dificuldades existentes para o chamado «processo de paz na região». A provocação israelita foi tão óbvia que até a senhora Clinton, porta-voz para as relações internacionais do imperialismo norte-americano, se viu obrigada a vir fazer declarações públicas condenando a decisão de Telavive. Foram, como facilmente se percebe, declarações hipócritas, mas ainda assim denunciadoras do carácter infame da represália adoptada pelos que, como toda a gente sabe, são protegidos de Washington. E é claro que praticamente o mundo inteiro, com as poucas excepções de países satélites dos Estados Unidos por força de dependências extremas, reprovou a decisão de Israel.
O permanente dever
Seria natural a suposição de que a televisão portuguesa, com eventual destaque para a operadora estatal, se incluísse nesse tal «mundo inteiro» condenador da provocação israelita. Não parece, contudo, que tenha sido assim, pelo que será legítimo admitir que pelo menos neste caso particular a TV lusitana se situou fora do mundo. A questão é que, embora tenha estado particularmente atento a esta questão, como aliás me cumpria, não encontrei em nenhuma estação portuguesa a informação, a análise ou o comentário que condenassem com clareza e adequada veemência a brutalidade decidida pelo governo de Benjamin Netanyahu, que parece convencido de que a memória de Auschwitz e outros lugares de horror lhe dá cobertura para tudo. Ouviu-se a notícia, é certo. Ouviu-se também uma ou outra referência tendencialmente crítica. Mas, tanto quanto me dei conta, foram comentários feitos como que a meia voz, mais adequados em quem tem medo de incorrer no desagrado do patrão do que em quem, como seria compreensível e adequado, está indignado perante uma atitude que infringe o direito internacional, que lança novas achas para uma fogueira que já provocou muitos milhares de vítimas ao longo de décadas, que faz explodir o já muito estreito caminho para a Paz, que arrogantemente desafia o mais elementar sentido de justiça. Nem sequer o facto de o desafio israelita ser manifestamente contrária à atitude de Portugal na ONU contribuiu, pelos vistos, para dar a telecomentadores e equiparados o desembaraço e a coragem que o caso permitiria. Em boa verdade, esta era uma altura para que nos nossos televisores surgissem pareceres que, sem favores ideológicos ou aparentados, tivessem a ver com o sentido da honra, da solidariedade para com os longamente oprimidos e sobretudo com o combate pacífico pela Paz. Talvez tenha acontecido na TV portuguesa alguma coisa suficientemente intensa que com isto se tenha parecido mas, se aconteceu, escapou-me, o que obviamente lamento. O facto é que não dei nem por uma eventual excepção à triste regra das meias palavras supostamente entrincheiradas numa neutralidade que a circunstância não consentia, pois entre o criminoso impune e a vítima desamparada o permanente dever é sempre o de tomar partido. Sob pena de se cair na cumplicidade por omissão e sem coragem. Como aconteceu.