A sessão
Eu, impenitente pecador, confesso que quando me dirigia para o lançamento do centenário (do nascimento) do camarada Álvaro Cunhal levava na ideia que ia assistir a uma explanação, clara, bem alinhada, de uma vida, de uma obra, de uma actividade, nalguns dos seus nós essenciais, – alguns conhecidos, outros menos ventilados ou na penumbra dos que os viveram –, mas ia sobretudo ao lançamento ancorado na convicção de que constituía meu dever prestar a homenagem da minha reduzida presença a uma das figuras de proa do movimento comunista português e internacional. Admito que fui amplamente surpreendido. E é o clarão dessa pessoal revelação emocional e intelectual que gostaria de tentar transmitir a todos os que não tiveram a fortuna de participar nela.
O evento ocorreu num hotel planeado para roçar o luxo, numa torre moderna, a quem a proximidade de bairros sociais e uma rede rodoviária de entrada e saída da grande cidade emprestava um ar equívoco. Uma parede de vidro de um espaçoso salão de entrada projectava-nos para terrenos baldios, onde avultava tojo rasteiro e tufos de canaviais, um campo de jogos cercado de muros sucintos, com debruado discreto a azul, redes de arames, tudo tutelado por edifícios a expandir-se na horizontal, filhos de um orçamento escasso. Ao fundo formigava a linha férrea Lisboa-Vila Franca. A escadaria de baldios salvava-se, e salvava-nos, metendo os pés arenosos no estuário do Tejo, rio que prenuncia o Oceano. O todo, ventoso, húmido, de uma beleza agreste, prenuncia o País, o País que a música de Lopes-Graça tão bem nos restituiu.
Começávamos, pois, bem, num quadro exacto que prenunciava a síntese do país real e do país amado.
A camarada que fez a apresentação do programa velozmente puxou para cima os pontos altos daquela sessão: um vídeo, mostrado num telão, que contaria o entrelaçamento da vida militante de Álvaro Cunhal, do seu pensamento político agudo e inovador, das suas produções artísticas no desenho, no desenho a cores, na ficção dirigida a adultos e às crianças, onde pulsa a dureza da vida clandestina, a formação da consciência de classe, os choques de carácter, a coragem, o temor, a fraternidade sem dourados, uma imensa alegria emergindo do coração da luta, das suas concepções estéticas enraízadas no real, na luta colectiva dos camponeses por uma vida melhor, nas figuras femininas úberes de sonho e de futuro; a música, composta para o acto, do violino de Manuel Rocha, da Brigada Vitor Jara; uma carta lida por Teresa Sobral; o discurso do Secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa; o encerramento da sessão com o «Acordai...» , de Lopes-Graça, nas cordas de Manuel Rocha.
Primeiro ponto, depressa passámos de expectadores a coniventes.
E o que provocou esta mutação?... Não sei. Seria o fio envolvente das cordas de Manuel Rocha onde ressoava Graça, e talvez o fado, e talvez Mozart (por essa altura eu já devia estar sob feitiço)?
Seria a carta lida por Teresa Sobral, que só, sob um foco de luz, sem cenário, sem adereços, súbito converteu a leitura num diálogo onde a vida imita a arte? Teresa Sobral sobre a qual se deve dizer que é uma actriz, sem necessidade de acrescentar qualquer adjectivo que soará a ornamento barroco.
Seria o sóbrio e exacto discurso de Jerónimo de Sousa?
Seria o magnífico vídeo que sintetizava vida e obra do camarada Álvaro Cunhal e do qual levantava voo aquele olhar directo, simultaneamente interrogativo e deitado ao futuro, confiante na razão e na força colectiva?
Pode afirmar-se que a resposta foi dada pelo “Acordai...”, cantado quase a cappella, onde as vozes de toda a assistência se fundiram num colectivo que anulou as diferenças de idades, de género, de experiências, dando razão à confiança no futuro.
De volta ao fim de tarde húmido e frio, acabada a sessão, a atmosfera não era a mesma para quem tinha vivido o lançamento. O lançamento lançou-nos. O velho Mestre continua vivo, continua novo.