A soberba

Correia da Fonseca

Chamemos-lhe soberba para não usarmos alguma palavra mais agreste ainda que mais exacta. A ela se referiu até o professor Marcelo no passado domingo, quando da sua habitual visita aos estúdios da TVI, desse modo se juntando ao que a generalidade dos portugueses vai sabendo: os europeus do Norte desta Europa supostamente unida, e quem diz «unida» talvez pelo menos sugira que solidária e até fraterna, na verdade tendem a desprezar pelo menos um pouco os europeus do Sul. Mais e pior: tendem até a caluniá-los, inventando que são gente apenas amando o ripanço, os banhos de sol à beira-mar, a comida farta e enxundiosa, e impondo aos do Norte, coitadinhos, o encargo de lhes pagar o sustento e seus anexos. Talvez esta visão deformada radique afinal na pura e simples inveja: como os do Norte têm pouco sol e muita chuva, como os mares que lhes banham os litorais são de água gelada, segregam esta versão mentirosa dos europeus do Sul, forma moderada de inconsciente vingança. Talvez. Convém notarmos, porém, que as coisas não se ficam por aqui: não apenas os do Norte se crêem com melhores hábitos de trabalho como a si próprios se olham como gente de melhor qualidade global, digamos assim, isto é, como criaturas de uma espécie humana superior. Daqui emergem, como bem se compreende, as diferentes modalidades de racismo que vão desde a mera parvoeira mais ou menos inofensiva até às mais infames práticas criminosas. Na verdade, o racismo é bem capaz de ser uma forma aguda de soberba, de onde a caridade de usar esta palavra como substituição benévola para o designar. Mas até a generosa prática da caridade há-de ter os seus limites, e a denúncia do racismo e da vasta gama de crimes a que o racismo dá origem ou pretensa cobertura nas suas diversas formas é, além do mais, um acto de lucidez.

Aproveitando o ensejo

Como é sabido, é da Alemanha que se hoje se desprende uma espécie de hálito racista que tem consequências no plano da economia e das finanças dos países do Sul. Isto não significa que numa mirífica Europa sem a Alemanha as coisas seriam idílicas e perfeitas: o grande factor de infecção, sua verdadeira raiz, é o capitalismo enformador de sociedades injustas e perversas quer à dimensão nacional quer à escala internacional. Porém, como a Alemanha foi promovida a líder do capitalismo na Europa, para isso tendo sido aliás decisivo o auxílio que no pós-guerra lhe veio do outro lado do Atlântico (tal como, de resto, acontecera após a Primeira Guerra Mundial com o investimento capitalista na ascensão do nazismo como travão ao «perigo comunista»), falemos um pouco da Alemanha, até porque dentro de alguns dias virá a Portugal a famigerada senhora Merkel numa vinda que se parece um pouco com a visita de uma soberana à gleba de um seu vassalo. Não se trata, nem sequer de longe, de tentar lembrar que esta seria uma boa oportunidade para xingar publicamente a senhora, e até é possível imitar o pastoral exemplo de D. José Policarpo para afirmar, numa de grande mansidão e pacifismo, que isso dos xingamentos não levam a nada, embora possamos acrescentar que eventualmente poderiam servir para um desabafo não excessivamente simpático. Trata-se, isso sim, de aproveitar a «deixa» dada pelo professor Marcelo nos estúdios da TVI para lembrar que muitos dos europeus do Norte, talvez sobretudo alemães, têm dos europeus do Sul e designadamente dos portugueses uma opinião não apenas injusta mas também insultuosa, e que esse facto nem ajuda à solidez de uma Europa dos capitalistas, que é a que temos por agora, nem a uma Europa dos povos, como é desejável e desejado que tenhamos um dia. E ainda de, à modesta escala destas duas colunas, aproveitar o ensejo para devolver aos «boches» e seus eventuais congéneres a sua falta de amabilidade. Porque nisto de comentar os conteúdos da televisão, que são o que de facto importa, no aproveitar é que está o ganho.



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