O presidente e as vaias
A televisão deu-nos notícia, por relato breve e imagens distantes, de que ao senhor Presidente da República se lhe deparou o infortúnio de ser assobiado e vaiado aquando da sua recente deslocação ao Norte do País. A vida é mesmo difícil, até para os presidentes das repúblicas: partira o senhor Presidente em direcção ao Porto a fim de presenciar os festejos joaninos que naquela cidade são verdadeiramente emblemáticos, de conviver um pouco com a população, porventura de levar também a tradicional e amigável agressão na cabeça com um alho-porro, e eis que lhe acontece o dissabor de ser hostilizado por uma parte dos cidadãos de quem é presidente, pois, como se sabe, o senhor professor assume-se como presidente de todos os portugueses. É certo que, a julgar pelo que a televisão contou, as vozes contestantes e os assobios incómodos não lhe aconteceram propriamente no Porto, mas sim em Guimarães, Castro Daire e porventura outros lugares próximos. Mas não é grande risco supor que o senhor Presidente bem entende que aquele desagradável acolhimento está longe de ser uma espécie de especialidade regional localizada no Norte, que bem poderia ser ainda mais agreste se a deslocação tivesse sido ao Alentejo ou mesmo ao seu Algarve pátrio. Na verdade, pelo caminho que as coisas estão a tomar, o senhor Presidente só poderá estar a salvo de ruidosas manifestações de desagrado se passar a visitar lugares do interior onde a desertificação sucedeu à antiga fartura populacional, e onde os remanescentes habitantes já perderam, em consequência dos anos que sobre eles pesam, a força para gritar e a capacidade para assobiar.
Fazer tudo quanto quer
É claro que assobios e vaias não são apenas barulho, ao contrário do que porventura explicam alguns assessores do senhor Presidente, mas sim uma mensagem política de que inevitavelmente o senhor Presidente toma conhecimento mesmo que queira minimizar-lhe o significado e a relevância. Pode o senhor Presidente recusar-se a receber uns quantos milhares de postais que cidadãos no pleno uso dos seus direitos, incluindo o da liberdade de expressão, lhe enviaram, mas não pode fechar os presidenciais ouvidos a assobios e vaias, isto é, à reprovação pública por parte de cidadãos de quem se quer Presidente. Achará decerto que constituem uma injustiça para com ele, que tão sabiamente se tem comportado como eminente figura política desde os já remotos tempos em que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava até à actualidade em que a direita em que sem dúvida se integra tem, finalmente, a quase sagrada trilogia enunciada por Sá-Carneiro: uma maioria, um governo, um presidente. Há décadas, um oponente de Salazar, Ramada Curto, disse a propósito do ditador que «quem sabe o que quer e faz tudo quanto quer, só não faz bem se não o souber fazer». Não garanto a literalidade da citação mas asseguro o seu sentido e a proximidade com as palavras originais. Ora, a direita de que o senhor Presidente é desde há muito uma destacada vedeta está a fazer tudo quanto quer e com a efectiva colaboração do Presidente da República. Um dos mais recentes e de facto imorais actos públicos de solidariedade e aliança factual entre PR e Governo foi a promulgação de legislação laboral em certos aspectos mais iníqua que a havida no tempo da ditadura. Feias acções como esta, e bem se sabe que não chegaria o espaço ainda sobrante destas duas colunas para todas elas inventariar, doem ao povo. Doem, isto é, provocam fomes, doenças, indignações, desesperos, iras. Custa a crer que estas consequências escapem à perspicácia e à sabedoria do senhor Presidente, pelo que se pode suspeitar de que ele entende lindamente os justos fundamentos das vaias. A menos que se automistifique e responsabilize os protestos pelo já caquético argumento de serem comunistas todos os que protestam. O que tornaria adequado que em intenção do senhor Presidente e da explicação que a si próprio ele daria se aplicasse um breve poema de Vasco Costa Marques escrito em pleno fascismo: «É tão fácil explicar / a doença pelo rato! / Morre-se gato / e tranquilo.»