Indignação: espontaneidade e manipulação

Albano Nunes

Grandes pe­rigos co­e­xistem com grandes pos­si­bi­li­dades de trans­for­mação

O si­len­ci­a­mento pela im­prensa diária da grande ma­ni­fes­tação do PCP contra o pacto de agressão no dia 12 de Maio no Porto, ao mesmo tempo que a uma acção dita de «in­dig­nados» eram de­di­cadas pá­ginas in­teiras, é um caso par­ti­cu­lar­mente grave de mis­ti­fi­cação mas tem uma ex­pli­cação bem sim­ples. O apa­ga­mento da luta or­ga­ni­zada e a pro­moção de quanto ajude a con­fundir e des­cen­trar a luta de classes e con­tribua para en­fra­quecer a frente anti-mo­no­po­lista, só pode fa­vo­recer o grande ca­pital e atrasar as mu­danças ne­ces­sá­rias, em Por­tugal como em qual­quer outro país. Esse o ob­jec­tivo do fa­brico e pro­moção in­ter­na­ci­onal de sím­bolos, slo­gans, dias, mo­vi­mentos e mesmo lí­deres «mun­diais» como agora su­cede com a «Pri­ma­vera da in­dig­nação».

A questão é séria e tem an­te­ce­dentes que não devem ser es­que­cidos. É o caso dos fa­mosos mo­vi­mentos «anti/​alter glo­ba­li­zação» a seu tempo apre­sen­tados como a mais mo­derna ex­pressão de in­ter­na­ci­o­na­lismo; da tese que blo­quistas e tuti quanti as­sa­nha­da­mente de­fen­diam (e de­fendem) de que, em tempo de «glo­ba­li­zação», a luta no marco na­ci­onal per­dera sen­tido e que o es­paço de trans­for­mação so­cial pas­sara a ser o plano eu­ropeu, assim jus­ti­fi­cando a sua ren­dição à União Eu­ro­peia dos mo­no­pó­lios dis­far­çada de «eu­ro­peísmo de es­querda»; das cam­pa­nhas vi­sando subs­ti­tuir o papel his­tó­rico da classe ope­rária por um «novo su­jeito re­vo­lu­ci­o­nário», como no «Maio de 68» ou, mais re­cen­te­mente, com o «mo­vi­mento dos mo­vi­mentos» ou as «mul­ti­dões» de Negri; as ten­ta­tivas para afastar do FSM os par­tidos e forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias e abrir es­paço ao re­for­mismo e à so­cial-de­mo­cracia, de tal modo que até Mário So­ares apa­receu, for­te­mente me­di­a­ti­zado, a er­guer as ban­deiras da «alter glo­ba­li­zação»; as ilu­sões fo­men­tadas em torno do Attac e am­bi­ci­osas ma­no­bras blo­quistas para ins­tru­men­ta­lizar o «Fórum So­cial Por­tu­guês» e impor ao mo­vi­mento po­pular uma agenda pi­lo­tada do es­tran­geiro; a pro­moção, com cí­nicos dis­farces de «in­ter­na­ci­o­na­lismo», do «par­tido da es­querda eu­ro­peia» do qual o PCP sempre se de­marcou de­vido à sua na­tu­reza su­pra­na­ci­onal e à sua um­bi­lical li­gação à UE, mas que o BE correu a in­te­grar.

 

Ontem a «anti/​alter glo­ba­li­zação», hoje a «Pri­ma­vera da in­dig­nação» e ou­tras cons­tru­ções in­ter­na­ci­o­nais mais ou menos so­ci­al­de­mo­cra­ti­zantes, cons­tru­ções com rou­pa­gens di­versas mas sempre com o mesmo pro­pó­sito de bran­quear o ca­pi­ta­lismo, re­co­nhe­cendo e até aca­ri­nhando o di­reito à in­dig­nação, mas para a re­cu­perar e con­finar aos li­mites do sis­tema. E ao mesmo tempo que si­lencia e com­bate a luta or­ga­ni­zada, ali­menta o es­pon­ta­neismo e o mo­vi­men­tismo in­con­se­quente e frus­trador do po­ten­cial de luta das massas; nega a re­a­li­dade da luta de classes e com­bate por todos os meios o sin­di­ca­lismo e o par­tido de classe; desvia para o leito de um in­di­vi­du­a­lismo anar­qui­zante e re­for­mista reais sen­ti­mentos de des­con­ten­ta­mento e in­dig­nação que ficam assim tem­po­ra­ri­a­mente ali­e­nados do mo­vi­mento po­pular.

 

O quadro com­plexo da si­tu­ação na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal en­cerra grandes in­ter­ro­ga­ções e in­cer­tezas quanto à sua evo­lução no curto e médio prazo. Mas a vida con­firma com o pró­prio cres­ci­mento das lutas po­pu­lares por esse mundo fora, de que as co­me­mo­ra­ções do 1.º de Maio foram mag­ní­fica ex­pressão, que grandes pe­rigos co­e­xistem com grandes pos­si­bi­li­dades de trans­for­mação pro­gres­sista e re­vo­lu­ci­o­nária. É ver­dade, para Por­tugal e para o mundo, que o ca­minho da al­ter­na­tiva é di­fícil, e que a vi­ragem ne­ces­sária não está à vista. Ela nas­cerá da pró­pria luta. Per­sis­tente e or­ga­ni­zada, com­bi­nando o com­bate em cada país com a so­li­da­ri­e­dade e a acção con­ver­gente no plano in­ter­na­ci­onal, em de­fesa dos in­te­resses con­cretos e ime­di­atos dos tra­ba­lha­dores e dos povos e tendo sempre no ho­ri­zonte o so­ci­a­lismo.

É desse ca­minho que a classe do­mi­nante pro­cura afastar as massas.



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