As ilhas que falam
Não é exactamente sob o apelo do mito da ilha longínqua e deserta onde poderíamos esquecer estas sociedades atafulhadas de imposturas, de brutezas, de tóxicos de várias naturezas, que muitas vezes emigro dos canais portugueses, gratuitos ou pagos, e opto por um dos canais que nos falam
de lugares ainda aparentemente pouco tocados por essas e outras ignomínias. Em verdade, como todos os que de perto ou de mais longe ainda estão alistados no combate por um mundo diferente e melhor do que nos é proposto pelo modelo socioeconómico dominante, sou muito escassamente visitado por esse apelo emigratório. Mas é verdade que por vezes me rendo a ele, é claro que apenas só como telespectador embarcado nas facilidades do zapping, e lá vou aportar a um desses canais abundantes em documentários de carácter mais ou menos ecológicos, uns apenas contemplativos, outros tocados por alguma militância. E foi num desses canais, não se pergunte qual à minha memória já por vezes vacilante, que me foi dada uma informação a um tempo espantosa e alarmante: a de que lá longe, nas lonjuras do Oceano Pacífico, existem e todos os dias crescem um pouco duas ilhas exclusivamente constituídas por lixo, maioritariamente resultante de plásticos, para ali arrastado pelo capricho das correntes marítimas que para ali o encaminha. Dito assim, ainda parecerá coisa pouca, mas essa aparência será eliminada quando soubermos, como aquele documentário me fez saber, que a superfície somada das duas ilhas assim denunciadas já atinge uma dimensão equivalente a alguns estados europeus de tamanho médio. Com a diferença de que, como se sabe, a superfície de alguns destes está em contracção devido a fenómenos de erosão marítima, enquanto a área daquelas duas ilhas de lixo vai crescendo um pouco, dia após dia.
Uma infecção virulenta
Sendo assim, resulta que aquelas duas ilhas que não têm nada de paradisíaco e de atraente, têm o mérito inesperado de falarem. Em linguagem muda, é certo, mas ainda assim eloquente. E o que elas dizem, se bem as ouvi, é que são o resultado de actividades económicas e comerciais desenfreadas, ceguinhas para as consequências que delas próprias resultam não apenas para as gentes que habitam este globo mas também para o próprio planeta. Sabíamos, é claro, da produção gigantesca de lixos, dos menos relevantes que se acumulam diante dos nossos olhos e dos mais assustadores a longo prazo, os lixos nucleares que sepultados em lugares para nós incertos ali ficam, activos ainda que escondidos, à espera de que decorra o tempo ao fim do qual já não será possível aos vindouros, se os houver, esquecer a sua acção. Mas, porque nós, homens e mulheres, pertencemos a uma espécie biológica que calhou ser racional, estamos naturalmente convidados a ultrapassar espantos e alarmes para irmos detectar responsabilidades e buscar soluções que estanquem a ameaça de que as tais duas ilhas são porta-voz e símbolo. E sabemos o bastante para que a busca não seja difícil: sabemos sem margem para dúvidas ou contradições credíveis que a responsabilidade é de um sistema de produção anárquico e voraz, alimentado pelo mito de um crescimento ininterrupto e cego, que rejeita liminarmente a óbvia necessidade de planeamentos globais ou quaisquer outros limites. Sabemos até que essa prática, espécie de infecção virulenta que alastrou a todos os cantos do mundo, tem um nome: é o capitalismo hiperliberal que não apenas segrega a mítica trilogia da fome, da peste e da guerra, mas agora claramente se encaminha para a liquidação das condições de sobrevivência humana. Num poema conhecido, António Nobre falou um dia na «Terra, essa bola de lama que pelos espaços vai leve como uma andorinha». Agora, graças à insaciável gula do modo de produção capitalista, a bola que é a Terra está a tornar-se não tanto de lama quanto de lixo. É isto, afinal o que aquelas duas ilhas nos dizem, é este o aviso que nos lançam. Uma fórmula lúcida que tem sido lançada informa-nos de uma alternativa já diante de nós, «socialismo ou barbárie». Talvez ela possa ser-nos presente sob uma outra forma que aliás dela não se afasta: socialismo ou extinção. O que, bem se vê, apela com urgência para uma luta que adiciona aos objectivos de uma sociedade mais justa o da preservação da própria humanidade.