Um valor insubstituível

Jorge Cordeiro (Membro da Comissão Política)

A greve geral da pas­sada quinta-feira cons­titui, pela sua di­mensão e sig­ni­fi­cado, uma jor­nada de luta de imenso al­cance: uma po­de­rosa afir­mação de co­ragem e dig­ni­dade de cen­tenas de mi­lhares tra­ba­lha­dores por­tu­gueses pe­rante a cam­panha de con­di­ci­o­na­mento e co­acção, e uma inequí­voca ex­pressão de des­con­ten­ta­mento, pro­testo e exi­gência de mu­dança; uma in­des­men­tível con­fir­mação do papel da única cen­tral sin­dical de classe re­pre­sen­ta­tiva dos in­te­resses dos tra­ba­lha­dores e de de­fesa dos seus di­reitos; o valor maior e de­ter­mi­nante da greve en­quanto forma de luta que atinge o co­ração do pro­cesso de ex­plo­ração e de cri­ação de mais-valia as­so­ciado ao ca­pital.

A luta da classe ope­rária é factor de im­pulso à luta de ou­tros sec­tores e ca­madas

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Não por acaso, sobre a greve geral es­tendeu-se, pri­meiro, um denso manto de si­len­ci­a­mento acerca da sua re­a­li­zação; de­pois uma pro­fé­tica e apri­o­rís­tica des­va­lo­ri­zação do que al­guns de­se­javam ver nela, pros­se­guida du­rante o dia por um ro­sário de men­tiras que ana­listas de ser­viço e al­guns jor­na­listas se en­car­re­garam de cons­truir; fi­nal­mente, uma in­tensa cam­panha de fal­si­fi­ca­ções em que con­vi­veram de braço dado o mais boçal re­ac­ci­o­na­rismo dos que vivem in­con­for­mados com o di­reito à greve, com a mais apri­mo­rada con­tra­facção ide­o­ló­gica que sob o verniz aca­dé­mico não se afi­gura menos as­ná­tica quanto aquele.

Entre os pri­meiros fica para re­gisto: o tom fas­ci­zante dos ar­gu­mentos das ban­cadas da mai­oria par­la­mentar que por sua von­tade de ime­diato su­pri­mi­riam, se tra­ba­lha­dores e País o per­mi­tissem, o di­reito à greve em nome do es­tado de ex­cepção or­ça­mental que se­gundo os pró­prios tudo jus­ti­fica; a es­ta­fante re­tó­rica sobre os pre­juízos para o País que deste dia re­sul­ta­riam pela au­sência ao tra­balho, sem se darem conta do ri­dí­culo da afir­mação por quem é res­pon­sável por mais de um mi­lhão de tra­ba­lha­dores por­tu­gueses es­tarem todos os dias im­pe­didos por razão de de­sem­prego de con­tri­buir para a cri­ação da ri­queza que in­vocam; a ba­fi­enta te­o­ri­zação sobre o ale­gado tra­balho e es­forço que o País e as suas di­fi­cul­dades re­cla­ma­riam em vez de luta e pro­testo para iludir a na­tu­reza de classe das sua po­lí­ticas e jus­ti­ficar uma in­su­por­tável ex­plo­ração e em­po­bre­ci­mento de mi­lhões de por­tu­gueses.

 

Pre­con­ceito e opor­tu­nismo

 

Entre os se­gundos, fi­carão gra­vadas as aca­dé­micas ti­radas de Elísio Es­tanque que não só re­pro­duziu, no es­sen­cial e do alto da sua cá­tedra de «so­ci­o­logia do tra­balho», em ma­téria de aversão aos tra­ba­lha­dores e à sua luta, o que os mais pri­má­rios já ti­nham afir­mado, como re­cu­perou todo o velho ar­senal de pre­con­ceito ide­o­ló­gico que acom­panha a ina­pa­gável veia dos que con­vivem com os po­deres e in­te­resses do­mi­nantes. To­mando de­sejo por re­a­li­dade, sen­ten­ciou que «a con­vo­ca­tória foi pre­ci­pi­tada, di­tada talvez pela ne­ces­si­dade de afir­mação da cor­rente mai­o­ri­tária da CGTP-IN», va­ti­cinou que «as suas con­sequên­cias podem levar ao pes­si­mismo, a re­tomar o pro­testo sobre outra forma, pois o mo­vi­mento 12 de Março de 2011 não está re­sol­vido» e con­cluiu, na­quele rigor de ci­ência que ajeita a in­ves­ti­gação ao que pre­vi­a­mente já de­cidiu, pelo «en­clau­su­ra­mento do sin­di­ca­lismo que pode dar um novo alento ao dis­curso li­beral».

Per­cebe-se o in­có­modo: ontem como hoje, ali moram as mesmas con­cep­ções opor­tu­nistas de ne­gação do papel da classe ope­rária e dos tra­ba­lha­dores na con­dução da luta po­lí­tica e so­cial; a ne­gação da in­ter­venção das or­ga­ni­za­ções de classe como força con­se­quente e de­ci­siva à de­fesa dos in­te­resses dos tra­ba­lha­dores; o bo­lo­rento des­prezo pelo con­junto das mais im­por­tantes or­ga­ni­za­ções de classe e de massas que ao longo de dé­cadas têm sido a mais im­por­tante e co­e­rente trin­cheira de luta contra o ca­pi­ta­lismo; a re­pe­tida, quanto fan­ta­siosa, va­lo­ri­zação da­quilo que querem apre­sentar, à força de o re­pe­tirem, como o novo mo­vi­mento so­cial (ale­ga­da­mente o único, vi­çoso, im­po­luto de in­de­pen­dência e capaz de res­ponder aos novos de­sa­fios) por con­tra­ponto ao que in­si­nuam como mo­vi­mentos «tra­di­ci­o­nais» (onde o mo­vi­mento sin­dical se in­cluiria), ina­dap­tados e in­ca­pazes de res­ponder ino­va­do­ra­mente aos novos pro­blemas e ainda por cima com uma ma­lé­fica li­gação aos co­mu­nistas; a des­va­lo­ri­zação da ex­plo­ração como ex­pressão cen­tral da opressão ca­pi­ta­lista e das de­si­gual­dades, subs­ti­tuindo-a ou se­cun­da­ri­zando-a pe­rante ou­tras opres­sões e a ne­gação da or­ga­ni­zação so­cial em função de in­te­resses de classe e do seu an­ta­go­nismo, ex­pressa na luta que entre eles per­corre o dia-a-dia da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista.

A uns e a ou­tros, des­men­tindo-os todos os dias, aí está o valor in­subs­ti­tuível da luta or­ga­ni­zada, o papel de­ter­mi­nante da luta dos tra­ba­lha­dores e da classe ope­rária en­quanto factor de exemplo e im­pulso à luta de muitos ou­tros sec­tores e ca­madas da po­pu­lação an­ti­mo­no­po­listas que sem ex­clu­sões ou des­va­lo­ri­zação são, não só bem-vindos, como ne­ces­sá­rios à luta para as­se­gurar a re­jeição do pacto de agressão, cons­truir uma po­lí­tica al­ter­na­tiva e ga­rantir um Por­tugal com fu­turo.



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