Um valor insubstituível
A greve geral da passada quinta-feira constitui, pela sua dimensão e significado, uma jornada de luta de imenso alcance: uma poderosa afirmação de coragem e dignidade de centenas de milhares trabalhadores portugueses perante a campanha de condicionamento e coacção, e uma inequívoca expressão de descontentamento, protesto e exigência de mudança; uma indesmentível confirmação do papel da única central sindical de classe representativa dos interesses dos trabalhadores e de defesa dos seus direitos; o valor maior e determinante da greve enquanto forma de luta que atinge o coração do processo de exploração e de criação de mais-valia associado ao capital.
A luta da classe operária é factor de impulso à luta de outros sectores e camadas
Não por acaso, sobre a greve geral estendeu-se, primeiro, um denso manto de silenciamento acerca da sua realização; depois uma profética e apriorística desvalorização do que alguns desejavam ver nela, prosseguida durante o dia por um rosário de mentiras que analistas de serviço e alguns jornalistas se encarregaram de construir; finalmente, uma intensa campanha de falsificações em que conviveram de braço dado o mais boçal reaccionarismo dos que vivem inconformados com o direito à greve, com a mais aprimorada contrafacção ideológica que sob o verniz académico não se afigura menos asnática quanto aquele.
Entre os primeiros fica para registo: o tom fascizante dos argumentos das bancadas da maioria parlamentar que por sua vontade de imediato suprimiriam, se trabalhadores e País o permitissem, o direito à greve em nome do estado de excepção orçamental que segundo os próprios tudo justifica; a estafante retórica sobre os prejuízos para o País que deste dia resultariam pela ausência ao trabalho, sem se darem conta do ridículo da afirmação por quem é responsável por mais de um milhão de trabalhadores portugueses estarem todos os dias impedidos por razão de desemprego de contribuir para a criação da riqueza que invocam; a bafienta teorização sobre o alegado trabalho e esforço que o País e as suas dificuldades reclamariam em vez de luta e protesto para iludir a natureza de classe das sua políticas e justificar uma insuportável exploração e empobrecimento de milhões de portugueses.
Preconceito e oportunismo
Entre os segundos, ficarão gravadas as académicas tiradas de Elísio Estanque que não só reproduziu, no essencial e do alto da sua cátedra de «sociologia do trabalho», em matéria de aversão aos trabalhadores e à sua luta, o que os mais primários já tinham afirmado, como recuperou todo o velho arsenal de preconceito ideológico que acompanha a inapagável veia dos que convivem com os poderes e interesses dominantes. Tomando desejo por realidade, sentenciou que «a convocatória foi precipitada, ditada talvez pela necessidade de afirmação da corrente maioritária da CGTP-IN», vaticinou que «as suas consequências podem levar ao pessimismo, a retomar o protesto sobre outra forma, pois o movimento 12 de Março de 2011 não está resolvido» e concluiu, naquele rigor de ciência que ajeita a investigação ao que previamente já decidiu, pelo «enclausuramento do sindicalismo que pode dar um novo alento ao discurso liberal».
Percebe-se o incómodo: ontem como hoje, ali moram as mesmas concepções oportunistas de negação do papel da classe operária e dos trabalhadores na condução da luta política e social; a negação da intervenção das organizações de classe como força consequente e decisiva à defesa dos interesses dos trabalhadores; o bolorento desprezo pelo conjunto das mais importantes organizações de classe e de massas que ao longo de décadas têm sido a mais importante e coerente trincheira de luta contra o capitalismo; a repetida, quanto fantasiosa, valorização daquilo que querem apresentar, à força de o repetirem, como o novo movimento social (alegadamente o único, viçoso, impoluto de independência e capaz de responder aos novos desafios) por contraponto ao que insinuam como movimentos «tradicionais» (onde o movimento sindical se incluiria), inadaptados e incapazes de responder inovadoramente aos novos problemas e ainda por cima com uma maléfica ligação aos comunistas; a desvalorização da exploração como expressão central da opressão capitalista e das desigualdades, substituindo-a ou secundarizando-a perante outras opressões e a negação da organização social em função de interesses de classe e do seu antagonismo, expressa na luta que entre eles percorre o dia-a-dia da sociedade capitalista.
A uns e a outros, desmentindo-os todos os dias, aí está o valor insubstituível da luta organizada, o papel determinante da luta dos trabalhadores e da classe operária enquanto factor de exemplo e impulso à luta de muitos outros sectores e camadas da população antimonopolistas que sem exclusões ou desvalorização são, não só bem-vindos, como necessários à luta para assegurar a rejeição do pacto de agressão, construir uma política alternativa e garantir um Portugal com futuro.