Os que sobejam

Correia da Fonseca

Eram velhos, viviam sozinhos em suas casas também presumivelmente velhas, e ali a morte lhes pôs fim à solidão. Ao longo do mês de Janeiro, a televisão quase todos os dias nos veio dar a notícia de que mais um deles fora encontrado morto, quase se diria que uma espécie de epidemia diferente das habituais se abatera sobre os velhos portugueses neste Inverno frio, substituindo-se à habitual gripe epidémica. Estes mortos, porém, não terão sido vítimas de algum vírus internacionalmente famoso, em verdade nunca se chegou a saber ao certo de que doenças morreram. Excepto num caso, referido sumariamente no passado domingo por Marcelo Rebelo de Sousa: pelo menos uma das idosas falecidas, imobilizada na sua cama por doença, terá morrido de fome alguns dias depois de também ter morrido, de súbito, a irmã também já velha que ainda conseguia tratá-la. O pormenor, se de pormenor se trata, arrepia. Mas bem sabemos, se é que estamos resolvidos a sabê-lo, que outros velhos portugueses têm morrido de fome, geralmente crismada de «insuficiência alimentar», decerto desde tempos remotos mas também nestes últimos tempos. Mesmo apenas quanto às quase duas dezenas de velhos que morreram em Janeiro, não seria ocioso saber quantos deles estavam feridos da tal «insuficiência alimentar» e em que medida é que essa provável circunstância terá contribuído para a sua morte na solidão. Pois, como facilmente se entende, quando se é velho, só e doente ainda que não em grau extremo, é mais difícil prover à própria alimentação, isto é, está-se mais vulnerável ao assalto da fome.

 

Como bichos

 

É claro que não há uma inevitável relação de causa e efeito entre solidão, fome e morte. Como se sabe, há mesmo regiões do mundo onde a fome é um fenómeno colectivo que se sofre colectivamente. Porém, estamos na Europa, embora não muito, e entre europeus estas coisas acontecem diferentemente do modo como ocorrem em África ou na Ásia: com maior discrição, em maior silêncio e seguramente em menor número. De qualquer modo, estamos em Portugal, que é terra civilizada, no que por cá acontece estamos particularmente interessados e, de resto, apesar dos bloqueios informativos que deixam passar o que distrai e cortam o trânsito ao que esclarece, vamos reunindo sabenças avulsas que nos permitem entender. Sabemos, por exemplo, que no nosso País há muitos velhos, velhos de mais que são um grande transtorno para as famílias, para o que do Serviço Nacional de Saúde vai resistindo e para o Estado que se arruína, coitado, a pagar-lhes pensões. Quanto às famílias (filhos, netos, porventura outros parentes) sabemos que poucas vezes têm condições para cuidar dos velhos, sequer para se lembrarem deles, mas sabemos também que não são estimulados para comportamentos diferentes. Não há, de todo, um esforço permanente, desencadeado ou patrocinado pelos chamados poderes públicos, para devolver à velhice e aos velhos o interesse que eles merecem e o respeito que lhes é devido pelo menos pelo muito que viveram e decerto sofreram. Em suma, bem se pode dizer que os velhos «não interessam nada», que são nesta sociedade um peso morto com a enorme inconveniência de ainda estar vivo, uma multidão que só causa incómodos e dificuldades. Que sobeja do âmbito dos nossos interesses e que, porque sobeja e é embaraçante, mais vale esquecer. Essa massa sobrante, esquecem-na os parentes que têm mais que fazer; esquecem-na os governos que apaziguam a consciência, se porventura alguma vez ela se lhes faz lembrada, promovendo a abertura de meia dúzia de «lares» e o encerramento de uma dúzia deles, mas sobretudo endossando deveres e responsabilidades para as costas largas e indefesas da «solidariedade entre vizinhos». Entretanto, pelo que os media nos vão contando e pelo mais que se sabe por conversas avulsas, o problema parece encaminhar-se para se resolver por si: os velhos, parcela sobrante da comunidade nacional, gente que sobeja, vão morrendo. A televisão lembrou-nos agora que muitas vezes no desamparo e na solidão. Isto é, como bichos.



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