<i>Sem vocação para a morte</i>
A primeira oradora da tarde foi Margarida Tengarrinha, companheira de José Dias Coelho e mãe das suas duas filhas, que, numa emocionante intervenção, falou da «intimidade criada em mais de uma dezena de anos em que partilhámos desde as lutas estudantis pela paz, nas Belas Artes, às tarefas comuns desempenhadas na clandestinidade». Entre estas contaram-se, recordou, a produção de documentação falsa que «defendesse os camaradas da vigilância da PIDE», a renovação gráfica dos documentos e da imprensa partidária e a criação de um arquivo fotográfico do Partido, a partir do qual redigiriam, ambos, o livro A Resistência em Portugal.
Da mesma forma que suportaram a «ausência da família e dos amigos» e a «dolorosa separação» da filha, foi também juntos que partilharam a felicidade do nascimento da filha mais nova, em plena clandestinidade. Margarida Tengarrinha realçou também a «alegria das pequenas coisas», fosse um sabor «intensificado pela austeridade do dia-a-dia» ou as «festas de amor vividas com a força de não sabermos se na madrugada seguinte não bateria à nossa porta uma brigada da PIDE a sobressaltar-nos na cama e a separar-nos». Mas, como diria pouco depois, «foi muito mais dura do que isso a separação imposta pelo crime que ali na rua que hoje tem o seu nome o tornou em mais uma vítima do fascismo».
Num dos momentos mais emocionantes do seu discurso, Margarida Tengarrinha contou que «não o vi depois de morto, só soube da sua morte à noite do dia em que o já tinham enterrado. Não fiz, pois, aquilo a que chamam o luto. E por isso arrastei dolorosamente ao longo dos anos coisas por dizer, remorsos por não ter dito, lamentos que não expressei».
Das muitas lutas travadas pelo seu companheiro, Margarida Tengarrinha destacou as suas «íntimas e não confessadas: uma batalha que se inicia dentro de si próprio, entre a sua passividade de artista contemplativo (que se expressava nos seus desenhos de uma simplicidade procurada e depurada) e, por outro lado, como defensor do neo-realismo, de uma arte militante e de combate, uma arte do povo, pelo povo e para o povo, pela qual se exprimiu também em muitos dos seus trabalhos».
Cinquenta anos depois do seu assassinato, Margarida Tengarrinha recorda um homem «na força da vida, jovem e entusiasta». E, lembrando o que dele escreveu Eugénio de Andrade, «sem vocação para a morte».