O ministro e a vaia

Correia da Fonseca

O ministro Miguel Relvas foi ao Congresso da ANAFRE, Associação Nacional de Freguesias, e ali recebeu uma monumental vaia de que, naturalmente, não gostou nada. A televisão, com a sua específica capacidade para espiar no rosto de cada qual as reacções pessoais em momentos difíceis ou chocantes, mostrou como ao ministro desagradou aquele acolhimento: uma aragem muitíssimo breve que não chegou a ser de ira mas não ficou muito longe disso perpassou pelo ministerial rosto, e por mais de uma vez. Compreende-se que assim tenha sido: embora sendo talvez a mais ligeira das agressões numa imaginária escala, uma vaia é também uma agressão, e aquela pode ter sido ainda mais penosa para o ministro por partir de uma assembleia onde militantes do seu próprio partido eram maioria. No final do encontro, uma declaração rejeitando o projecto governamental de extinguir um enorme número de freguesias foi aprovado por uma quase unanimidade que só não aconteceu porque dois autarcas presentes, também deputados do PSD à Assembleia da República, optaram pela abstenção, como também a TV acabou por informar ainda que discretamente. Foi, pois, uma estrondosa derrota do Governo «no seu próprio campo», como se diria no dialecto futebolês, e surgiu em grande parte como uma derrota pessoal do ministro. Se ministro e Governo fossem criaturas para meterem a mão na consciência, acto de que já provaram serem incapazes, arrepiariam caminho. Como essa forma de coragem, bom senso e inteligência está comprovadamente fora das suas capacidades, decerto que prosseguirão no caminho que encetaram alegando porventura que nesse sentido receberam ordens do estrangeiro, isto é, da troika. Caberia lembrar como esta suposta justificação, a de se estar apenas a cumprir ordens, tem antecedentes históricos verdadeiramente sinistros, mas seria excessivo invocar a memória de grandes horrores para contestar o horrorzinho minúsculo consubstanciado neste ministro e no projecto de que é portador.

 

Onde nos encontramos com o sonho deles

 

Tanto quanto a televisão permitiu saber, a ANAFRE não se opõe total e cegamente à agregação de freguesias por extinção de umas quantas, mas sim à sua exterminação «por grosso», digamos assim, ao abrigo de uma alegada necessidade de comprimir despesas. Porém, é possível e provável que o cidadão telespectador que já aprendeu o que é a direita política, e mais ainda a direita portuguesa no poder, entenda este projecto de destruição maciça de órgãos de Poder Local como mais um acto de destruição do espírito e da prática de Abril. É sabido que o Poder Local aproxima as populações dos problemas que directamente lhes dizem respeito mesmo quando as decisões necessárias para a sua solução se situam fora da freguesia e já ao nível municipal, e também que na gestão desse poder a CDU se afirmou com tal competência e eficácia que o seu prestígio no sector se tornou de facto inquestionável. Assim, só por grande ingenuidade se pode supor que o Governo, entranhadamente de direita, e mesmo a troika, de facto órgão bem representativo da direita transnacional, distraidamente se alhearam da dimensão democrática que, limitado embora, o poder das pequenas autarquias representa. É muito claro que o tandem Governo português/troika tem uma vocação ditatorial, e que esse tipo de vocação em todas as circunstâncias abomina a cedência dos poderes, ou mesmo apenas do mero direito de representação, em favor de níveis populacionais próximos do povo que sempre desejam passivo, submisso, ignorante e muito agradecido. Não há factos conhecidos que possam sustentar que a rejeição dessa motivação profunda possa ter estado na raiz da recusa do projecto do Governo pelos autarcas da ANAFRE, e de qualquer modo a TV nem de longe passou por lá, mas essa ausência não invalida o facto: a eliminação de freguesias coloca milhares de cidadãos mais longe das decisões e até dos seus meros representantes. É, de facto, menos democracia, mesmo que nos pareça sê-lo em pequeno grau. E menos democracia é, em todas as circunstâncias, o sonho da direita.



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