Comentário

Para lá do espalhafato

João Ferreira

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O espalhafato mediático que sempre envolve os conselhos europeus tem, habitualmente, dois efeitos (poderíamos também dizer dois objectivos): o primeiro, centrar as atenções em duas ou três ideias superficiais, repetidas à exaustão sem variação de monta nos diversos órgãos de (des)informação; o segundo, desviar as atenções de muito do que de essencial resulta destes encontros. Assim aconteceu, mais uma vez, no último Conselho Europeu e na Cimeira da Zona Euro.

Como em tantas outras situações, para lá do espalhafato, impõe-se um esforço para levar a cabo uma análise objectiva e rigorosa das conclusões destas reuniões.

Dessa análise resultam, inevitavelmente, algumas constatações, outras tantas reflexões e, naturalmente, também uma ou outra interrogação. Sem preocupação de as ordenar em função da sua importância, alinha-se em seguida, de modo necessariamente sumário, algumas delas.

 

1. Não nos deve descansar, bem pelo contrário, mas convém assinalar como a realidade vem confirmando a justeza e o acerto das análises que vamos fazendo.

Há uma década alertámos para os efeitos que teria, numa economia frágil como a nossa, a adesão ao Euro, nos moldes impostos pela Alemanha, na defesa dos seus grupos económicos e financeiros. Por outras palavras, ditas e reditas à época, alertámos para os efeitos deste autêntico confronto entre uma panela de ferro e uma panela de barro. A periferia feita em cacos aí está, a demonstrar, dramaticamente, o resultado do confronto e como tínhamos razão.

Desde há meses que dizemos que a dívida grega, como a portuguesa, nas condições impostas pelo FMI e pela UE, sendo embora pretexto para todo o tipo de assaltos e sevícias feitos aos trabalhadores e aos povos, é simplesmente impagável. Por isso propusemos (e propomos) uma renegociação dessa dívida, avisando que, na sua ausência, alguma reestruturação seria inevitável. Consuma-se agora, relativamente à Grécia, o que há poucos meses dissemos ser inevitável a breve trecho: o corte substancial no montante da dívida (ardilosa e manhosamente apelidado de «perdão»). Por uma simples razão: todo o processo de extorsão tem limites, impostos pela exaustão da vítima às mãos do extorsionário. A questão, mais uma vez, é no interesse de quem se renegoceia ou reestrutura a dívida: da vítima ou do extorsionário?

 

2. As decisões da Cimeira do Euro não tocam, ao de leve que seja, em nenhuma das causas estruturais da crise; nem mesmo no que se refere à sua expressão ao nível das dívidas soberanas. Os mecanismos que têm aberto caminho à especulação permanecem intocados. Ora assim sendo, o resultado não será diferente do que até aqui fomos observando.

Sabemo-lo já, o Banco Central Europeu não empresta dinheiro aos estados. Sabemos também que o diferencial entre as taxas de juro a que os bancos se financiam no BCE e as taxas de juro que cobram aos estados lhes garantiu avultadas margens de lucro. Sabemos ainda que a situação não é substancialmente diferente com os empréstimos FMI-UE, a propósito dos quais o presidente do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) veio dizer, há alguns meses, serem «um bom negócio» para os países que concederam garantias. Sabemos ainda que o BCE e o FEEF compram dívida no mercado secundário. Quer dizer, compram dívida aos bancos que compraram dívida aos estados, aliviando-lhes a exposição excessiva à «toxicidade» e garantindo que o mecanismo de extorsão possa continuar a funcionar, com alguma fluidez.

E ficamos a saber agora que (1.) o FEEF vai ser reforçado e que (2.) a «recapitalização» da banca vai canalizar mais de cem mil milhões de euros para quem tem amealhado lucros à conta deste mecanismo, a fim de tapar os buracos abertos pela roleta russa da especulação. Pagos por quem? Por aqueles a quem UE anuncia:

 

3. (Seguem-se transcrições das conclusões da cimeira do Euro…) Mudanças do mercado de trabalho para aumentar a flexibilidade; liberalização dos serviços públicos; reformar a legislação laboral, nomeadamente as regras e procedimentos em matéria de despedimentos; aumentar a idade da reforma para 67 anos. A tudo isto e a muito mais, somam-se medidas de cariz abertamente colonial, como o compromisso de respeitar as recomendações da Comissão no que diz respeito à implementação do Pacto de Estabilidade ou outras de idêntico recorte.

Cimeira após cimeira vai ficando claro que a UE nada mais tem para oferecer que não um caminho de regressão civilizacional. A recusa deste caminho é indissociável do confronto inevitável com os fundamentos desta UE, numa luta que convoca todos os trabalhadores e os povos da Europa.



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