O dia dos insultos

Correia da Fonseca

Foi, no passado dia 31, o chamado Dia das Bruxas, o Halloween, tradição irlandesa transplantada para os Estados Unidos por imigrantes que da Irlanda a transportaram na bagagem do seu imaginário colectivo e nos Estados Unidos foi abocanhada pela eficacíssima máquina de mercantilizar que é uma das imagens peculiares do grande país da América. Mas foi também o Dia Mundial da Poupança, e suspeito de que não por acaso bruxas e conselhos para que poupemos são celebrados no mesmo dia. É que, como se sabe, as bruxas não são excelentes senhoras apostadas em praticar o bem; bem pelo contrário, são pérfidas e cruéis, e a prática tendencialmente hipócrita de aconselhar poupanças a quem, ao invés de poder acumular economias, só pôde acumular carências, é um acto de requintada crueldade. Foi, contudo, o que mais uma vez aconteceu neste 31 de Outubro e através da televisão, isto é, de um modo fácil, cómodo e asseguradamente impune. Isto da impunidade tem a ver com o facto de um conselho a que poupe dado a um cidadão que deva dinheiro na farmácia e na mercearia da rua, se a houver, que esteja em forçado atraso no pagamento da prestação ou renda da casa que (ainda) habita, que ainda não tenha pago o empréstimo contraído para poder comprar livros e outro material escolar para os seus filhos, soa inevitavelmente como um insulto a quem o receba. Ora, se tal conselho fosse dado por alguém que tivesse batido à porta do cidadão espoliado e arruinado implicaria o risco de um qualquer desatino agressivo que a indignação pode gerar. Mas a televisão garante, entre outras vantagens, a da impunidade de quem a use para provocar, mentir ou, como neste caso dos conselhos em favor de impossíveis poupanças, para insultar. Mesmo que o insulto venha com bons modos, nascido de supostas boas intenções e fardado de solidariedade.

 

Por acréscimo

 

Entendamo-nos para dissipar eventuais estranhezas: é insulto, mesmo que inconsciente de o ser, aconselhar um paraplégico a que corra os 100 metros, um mudo a que profira um discurso, um cego a que espreite por um telescópio os anéis de Saturno. É insulto e sabe a insulto a quem o recebe porque tem o ácido sabor do escárnio, por vezes mais doloroso de receber do que a agressão física. Ora, a própria televisão nos vai diariamente contando o estado em que se encontra uma grande parte dos portugueses: desempregada, crivada de dívidas, a vender o escasso ouro herdado da avozinha para pagar uma responsabilidade mais urgente ou a um credor mais implacável, a ver aproximar-se o dia em que perderá o magro subsídio de desemprego que ainda lhe permite evitar o pior. «Uma grande parte dos portugueses», isto é, milhões; pois aos quase dois milhões que já sobreviviam dificilmente abaixo do nível dito oficial da pobreza se adicionam agora, dia após dia, muitos mais a debater-se numa específica teia de horrores de onde não vêem maneira de se libertar. Porque bem sabem que não serão libertados por um governo que lhes mente ou, na alternativa, finge que não os vê. Que, depois de extorquir aos trabalhadores parte das remunerações a que eles ganharam direito, se propõe agora esbulhá-los também de horas de trabalho num óbvio desafio a décadas de luta para a consecução de horários humanizados. Esta é, pois, uma enorme parte da imaginária teleplateia a quem uma senhora com bom aspecto, bons modos, decerto boas intenções, mas manifestamente sem a adequada consciência do que está a fazer, vem recomendar-lhe que poupe uns euros todos os dias, todas as semanas, todos os meses. E por acréscimo, sendo legítimo supor que na sequência desse conselho não está a presunção de que as economias conseguidas sejam guardadas debaixo do colchão, surge o caminho do seu depósito num banco. Revela-se então uma outra vantagem possível. Sabe-se que a banca, estando descapitalizada, isto é, tendo investido em operações desaconselháveis mais do que a prudência aconselhava e enfrentando dificuldades em contrair empréstimos no exterior, está precisada de depósitos. Assim, o depósito em bancos dos aforros conseguidos iria dar uma ajuda, grande ou pequena, no sistema bancário. Entende-se: temos de ser uns para os outros ou, como os do Governo repetem, de estarmos todos unidos. Ou ainda de outro modo: os que podem aos que precisam. É, de facto, mais uma forma de escárnio, isto é, de insulto. Com inegáveis bons modos, mas no Dia das Bruxas, que não são companhia recomendável.



Mais artigos de: Argumentos

Datas

Eis uma nova data a reter no calendário: a partir deste 1 de Novembro as indemnizações por despedimento passam de 30 para 20 dias nos novos contratos, com um «tecto máximo» de 12 meses – ou seja, o trabalhador pode ter 30 anos de casa, que só recebe...

uma identidade própria do dirigente associativo

Um dos aspectos mais graves da «crise» do clube assenta no facto de o dirigente associativo voluntário (o «carola» dos bons e velhos tempos) não afirmar, com suficiente firmeza e lucidez, a autoridade democrática de que está investido a partir da eleição...

Sionismo, Secretismo, Maçonaria e Vaticano

«Globalização não é um conceito sério. Nós, americanos, inventámo-lo para dissimular a nossa política de invasão económica de outros países ...»(John Kenett Galbraith, professor norte-americano de Economia, «História da...