uma identidade própria do dirigente associativo

A. Mello de Carvalho

Um dos as­pectos mais graves da «crise» do clube as­senta no facto de o di­ri­gente as­so­ci­a­tivo vo­lun­tário (o «ca­rola» dos bons e ve­lhos tempos) não afirmar, com su­fi­ci­ente fir­meza e lu­cidez, a au­to­ri­dade de­mo­crá­tica de que está in­ves­tido a partir da eleição dos seus pares. Com de­ma­siada frequência, o di­ri­gente aceita a po­sição mi­se­ra­bi­lista e as­sis­ten­ci­a­lista em que o co­locam para me­lhor o con­tro­larem, sem pro­curar sa­cudir uma acção de tu­tela [re­a­li­zada em 1.ª ins­tância pelo Poder Local e, de­pois, pelo Cen­tral].

Por outro lado, con­fundem po­si­ções e fun­ções e co­locam-se em si­tu­a­ções que fazem deles au­tên­ticos «fun­ci­o­ná­rios» ao ser­viço da massa as­so­ci­a­tiva [per­dendo, por isso, o seu es­ta­tuto de «actor» da de­mo­cra­ti­zação] ou dos pró­prios po­deres pú­blicos [quando se cons­ti­tuem ele­mentos in­te­grantes dos sec­tores po­lí­ticos que estão no poder, ou então, como abs­ten­ci­o­nistas, o que obe­dece à mesma ló­gica]. De facto, por vezes, as­sumem um ca­rácter po­le­mi­zador e con­tes­tário ex­ces­sivo, de ca­rácter hi­per­crí­tico [quando per­tencem às forças po­lí­ticas da opo­sição] que, pela sua falta de ma­tu­ri­dade, ou pelo sec­ta­rismo e ir­re­a­lismo, in­vi­a­bi­lizam a es­tru­tu­ração e exe­cução de qual­quer pro­jecto de ca­rácter co­mu­ni­tário, antes en­vol­vendo-se em que­zí­lias e que­relas de vi­zi­nhança sem qual­quer sen­tido e que, sendo ca­rac­te­rís­ticas do pas­sado, hoje já não se podem manter.

A crise da «ca­ro­lice» com­pre­ende-se com maior fa­ci­li­dade quando se com­para a re­a­li­dade dos factos com aquilo que é de­se­jável. No sector des­por­tivo a con­tra­dição entre estes dois termos não pára de au­mentar. Agra­vada nos úl­timos anos pela visão des­com­pro­me­te­dora do Es­tado e pela ine­vi­tável pe­núria de meios daí re­sul­tante, e pelo papel que lhe im­põem e que aceita acri­ti­ca­mente, essa con­tra­dição acaba por cau­ci­onar a acção de forças que se po­si­ci­onam aber­ta­mente contra o pró­prio mo­vi­mento as­so­ci­a­tivo.

 

Uma questão de re­co­nhe­ci­mento

 

Convém es­cla­recer o sen­tido de crise. Não se trata de exigir ao Es­tado que tudo pague e que pague sem con­trolar. Com frequência os de­fen­sores do «menos Es­tado» ar­gu­mentam, le­viana ou in­te­res­sei­ra­mente, que é isto que o di­ri­gente de­seja. Convém des­mis­ti­ficar esta po­sição.

De facto, o que o «ca­rola» pre­tende é que, pe­rante o tra­balho re­a­li­zado pelos clubes e pelos seus pares, se avalie e re­co­nheça a im­por­tância da con­tri­buição que for­necem, de­sin­te­res­sa­da­mente e sem re­tri­buição ma­te­rial, para o pro­gresso do des­porto e, em úl­tima aná­lise, para o da so­ci­e­dade no seu todo. Esse re­co­nhe­ci­mento impõe que o Es­tado aceite que há um mí­nimo de con­di­ções com­pa­tível com aquela função, que deve ser pre­en­chido por si. Ao mesmo tempo não é acei­tável que o Es­tado afirme que ao «dar» ad­quire di­reito a «di­rigir», pois, de facto, quem é que dará mais?

Na ver­dade, o que está por de­trás desta falta de re­co­nhe­ci­mento é a re­cusa do Es­tado em tomar parte ac­tiva, tanto por meio de le­gis­lação ade­quada, como através dos meios fi­nan­ceiros téc­nicos e hu­manos, na cri­ação de pa­drões de vida re­gu­lada por prin­cí­pios eti­ca­mente re­co­nhe­cí­veis como hu­ma­ni­za­dores. O que está em causa, em úl­tima aná­lise, é saber se o Es­tado deve in­tervir sig­ni­fi­ca­ti­va­mente na li­qui­dação de si­tu­a­ções ca­rac­te­ri­za­doras da so­ci­e­dade «dual» (a dos ricos e a dos po­bres, que está em agra­va­mento por mais que tal se negue) e na ge­ne­ra­li­zação do bem-estar so­cial a todos os ci­da­dãos.

A crise do di­ri­gismo des­por­tivo tem de se com­pre­ender no in­te­rior do quadro deste con­junto de ques­tões. Como se vê, diz res­peito, si­mul­ta­ne­a­mente e, nal­guns casos, de forma im­brin­cada entre si, quer ao Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo quer os Po­deres Pú­blicos. O di­ri­gismo des­por­tivo po­pular tem de ca­mi­nhar no sen­tido da cons­trução da sua iden­ti­dade pró­pria para poder ser to­mado em con­si­de­ração como corpo so­cial es­pe­cí­fico. Isto quer dizer que tem de con­se­guir de­finir as suas pró­prias ne­ces­si­dades e de as con­subs­tan­ciar em pro­cessos de acção, de modo a poder rei­vin­dicar a sua par­ti­ci­pação nas de­ci­sões dos po­deres pú­blicos que de­ter­minam a exis­tência do des­porto que temos e con­di­ci­onam a di­fusão da prá­tica das ac­ti­vi­dades fí­sico-des­por­tivas pela to­ta­li­dade da po­pu­lação, seja qual for a sua si­tu­ação eco­nó­mica e es­ta­tuto sócio-cul­tural.

De acordo com esta pers­pec­tiva o «ca­rola» tem de aban­donar a sua ati­tude, quase ge­ne­ra­li­zada, de la­men­tação cons­tante e passar a ac­tuar, em termos co­lec­tivos, de acordo com novas pers­pec­tivas ade­quadas ao tempo pre­sente. O «re­vi­va­lismo» de muitos di­ri­gentes, e que cons­titui em si pró­prio sin­toma e origem de certos as­pectos da crise, deve ser li­qui­dado quanto antes, dando lugar a uma nova ati­tude cons­ci­en­te­mente res­pon­sa­bi­li­za­dora.

Nota: Por la­men­tável lapso, o ar­tigo pu­bli­cado nesta secção a 29/​9/​11 foi o mesmo que tinha sido pu­bli­cado a 16/​6/​11. Pelo facto apre­sen­tamos des­culpas ao autor e aos lei­tores.

 



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