O pão nosso de cada dia
Foi na verdade do nosso pão quotidiano que tratou o programa Prós e Contras na passada segunda-feira regressado aos nossos televisores. É claro que, tal aliás como na oração cristã, a palavra «pão» designa aqui a alimentação pelo menos um pouco mais ampla que permite a sobrevivência, e de facto foi de um certo grau de sobrevivência que o Prós e Contras tratou, ainda que o título da emissão, «Portugal – A terra e o mar», sugerisse antes uma abordagem quase paisagística do País. Não era assim: tratava-se de examinar a situação da Agricultura e da Pesca portuguesas não apenas à luz da actual situação económica e financeira mas também, talvez sobretudo, de um facto já antigo mas agravado em tempos recentes, o de Portugal não ser auto-suficiente em matéria alimentar. Quer isto dizer, como se sabe, que o País tem de importar grande parte dos produtos necessários à alimentação dos portugueses. E, como também se sabe, a situação torna-se grave porque a exportação portuguesa de bens alimentares está longe de poder equilibrar a necessidade das importações nessa área, pelo que o chamado défice alimentar se agrava constantemente. Não é necessária grande perspicácia para entender que esta situação tem consequências péssimas para a balança de pagamentos, para a dívida externa, para todas essas coisas terríveis que andam a ensombrar-nos. Por isso se diz e repete que é preciso produzir mais, também e talvez sobretudo nesta área. E estes foram os temas que ocuparam a conversa havida sob a habitual batuta de Fátima Campos Ferreira e em que participaram não apenas os especialistas instalados no palco, entre os quais Assunção Cristas, poliministra, pois de facto é responsável por mais de um Ministério, e figuras mais ou menos destacadas dos sectores em questão: da Agricultura (incluindo as florestas) e das pescas. De entre o que ali se foi ouvindo, porventura o mais relevante foi o generalizado diagnóstico de que a insuficiência e as várias dificuldades são generalizadas, mas foi curioso que nem uma só voz se tenha erguido para lembrar que nem sempre as coisas foram tão más, que houve um momento em que Agricultura e pescas portuguesas foram arrasadas por aquiescência a um mando de Bruxelas, e que essa espécie de liquidação nacional teve um responsável, por sinal sábio em matéria de contas e economias, que está hoje instalado em Belém em silêncio, aparente tranquilidade e evidente impunidade política.
Os presentes e os ausentes
É assinalável que, Fátima Campos Ferreira à parte, todos quantos ali estavam e puderam intervir eram empresários ou afins. Não direi que fiquei surpreendido com esse facto, até por julgar saber que a mão-de-obra assalariada na Agricultura é relativamente pouco numerosa, que muitos pequenos agricultores acumulam de facto o desempenho do trabalho braçal com a minúscula gestão da sua actividade. Não se dirá o mesmo das pescas, decerto. Ainda assim, porém, não parece que fosse inevitável a transformação da reunião que este Prós e Contras foi, como aliás sempre é, numa espécie de assembleia de empresários dos sectores envolvidos. De facto, é inverosímil, para não dizer que evidentemente falso, que Agricultura e pescas não envolvam trabalhadores por conta de outrem, gente com vínculo precário ou não, permanente ou ocasional, mas gente que trabalha em empresa que não é sua, que é remunerada melhor ou pior, que tem condições de trabalho aceitáveis ou insuficientes, que tem problemas vários de ordem laboral. É difícil aceitar que gente dessa, ou quem a representasse, não devia ali estar, até porque é seguramente gente que além das mãos para o trabalho duro tem também cabeça capaz de pensar os problemas da área onde se situa. Fica-se a suspeitar de que a sua total ausência do Pavilhão Atlântico na noite da passada segunda-feira pode dever-se à convicção já quase irracionalizada de que neste Portugal de Novembro os patrões são tudo e o resto quase nada. E essa inevitável suspeita foi bastante para impedir o eventual prazer de se assistir a uma discussão pública de questões de fundamental importância para cada um de nós. Até porque têm directamente a ver com o tal pão quotidiano que cada vez mais vem escasseando na mesa de cada vez mais portugueses.