Decisões importantes
Para a minha sobrinha Rita que também gosta de escrever histórias
Mariana acordou já quase às dez da manhã. Mexeu o corpo na cama, para sentir o resto do prazer duma noite bem dormida. Hoje não ia trabalhar. Tinha pedido o dia ao chefe para tratar de coisas pessoais. Finalmente levantou-se, foi à janela ver a nesga do rio e o estado de céu. Os dois estavam azuis. Da sua casa, numa rua estreita da Madragoa, via-se tudo isto, ouviam-se as conversas na rua e quase toda a gente se conhecia. Espremeu uma laranja, fez duas torradas que regou com azeite e bebeu o primeiro café do dia. Passou-se pelo duche, vestiu-se e saiu a comprar alguma coisa para o almoço.
Primeiro foi à peixaria da D. Anabela, mulher séria, inteligente e esperta. Olhou para o peixe, até que ouviu: «A menina já viu os peixes-galo que trouxe hoje? Ainda cheiram a mar». Carotes, pensou a Mariana e logo ouviu «já sei que não são baratos, mas são uma maravilha. Olhe estas guelras vermelhinhas, estes olhos ainda vivos e este cheiro». Admitiu que estava convencida. Arranjaram-lhe o peixe em dois filetes e à parte as espinhas para congelar e um dia fazer um caldo. «Obrigada, menina». «Até logo D. Anabela».
Subiu uns metros para ir ver as hortaliças da D. Noémia. «Olhe hoje só quero uma alface bonita, umas maçãs e uns limões». «Olhe para isto menina, tudo fresco e saboroso. Vem duma horta que temos em Alpiarça. Vamos lá, vemos a família e trazemos a carrinha cheia de coisas boas. Olhe, menina, aqui não há químicas nem espanholadas. É tudo nosso». Pagou. «Até à próxima D. Noémia». «Bom dia menina!»
Um bom dia era mesmo o que precisava. Temperou os filetes com sal e limão e deixou-os a escorrer. Sentou-se no pequeno sofá revendo mentalmente as decisões que tinha tomado. Continuava a estar de acordo consigo própria. Olhou para o rio, serviu-se dum vermute branco frio e fumou o primeiro cigarro do dia. Sentiu-se confortável. Quando acabou este pequeno ritual era meio-dia. Decidiu preparar o almoço: separou as folhas da alface, lavou-as e deixou-as a escorrer. Cortou duas maçãs em quadradinhos, deitando-lhe logo sumo de limão, para não oxidarem e ficarem feias. Sem pressas, secou os filetes num pano e aqueceu uma frigideira, que lhe servia de grelhador. Quando aqueceu bastante pôs os filetes a grelhar do lado da pele só uns três minutos. Depois, com uma espátula, deu-lhes a volta e deixou estar mais uns dois minutos. Estavam grelhados e sumarentos. Ripou a alface como se fosse caldo verde e juntou-lhe as maçãs. Regou com um pouco de azeite e salgou. Abriu uma garrafa dum frio branco seco do Douro e sentou-se a comer. Realmente não a tinham enganado. Tudo sabia bem.
Arrumou a cozinha e sentou-se outra vez. Tudo aquilo estava a pedir mais um pouco de branco fresquinho e outro cigarrito. Ali ficou a dar mais voltas à cabeça e chegando sempre às mesmas conclusões.
Por volta das três, saiu de casa, apanhou o carro e dirigiu-se à empresa onde trabalhava. «Está o Sr. Menezes?» «Está sim Dra. Mariana. Vou avisá-lo». Imediatamente entrou no gabinete do chefe e sócio da empresa. «Pensava que hoje não vinha.» «Realmente é assim, mas queria dizer-lhe algumas coisas. Há cerca de dez anos que trabalho aqui. Conheço a empresa e conhecem-me a mim. Creio ter cumprido todas as minhas obrigações com esforço e profissionalidade.» O chefe concordou vivamente. «Mas em dez anos nunca tive um contrato e trabalhei sempre com recibos verdes. Acho que é injusto e venho pedir-lhe que me proponha um contrato fixo.» O chefe, não esperava nada daquilo e só pode dizer: «mas a Dra. Mariana sabe que não é hábito da empresa fazer contratos fixos». «Os hábitos, Sr. Menezes são para ser mudados. Eu fumava quase dois maços por dia e agora não chego aos dez cigarros». «Temos que pensar Dra. Mariana». «Muito bem. Só queria dizer-lhe que estou a defender os meus direitos e não há nada pessoal contra o Sr. ou os colegas. Queria continuar a viver neste país, mesmo se o País dá pena e tristeza. Mas é o meu país. Tenho possibilidades de trabalho no estrangeiro. Não quero trabalhar na concorrência aqui e finalizarei o que tenho entre mãos. Só peço condições normais para continuar a trabalhar nesta desgovernada terra». Saiu, deixando o Sr. Menezes confundido e com um problema para resolver.
Quando deu por si estava na rua, um pouco atordoada, mas contente consigo mesma.
Ainda tinha outro problema. Desde há uns tempos saía com o Bernardo, que era um pouco beto e do Estoril, que já a tinha convidado várias vezes para jantar, sempre em sítios de decoração refinada e comida mais ou menos aceitável. Um até tinha velas na mesa. Sabia que ele gostava dela e ele não lhe era indiferente. Ela também não era operária fabril e às vezes até gostava daquelas pirosadas. Agarrou o telefone, marcou um número: «olá! sou eu. Estou-te a telefonar para te convidar a jantar num restaurante bom, mas diferente daqueles onde me levas. Toma nota O STOP do Bairro, em Campo de Ourique, na Rua Tenente Ferreira Durão, o numero não sei. Está lá antes das oito porque aquilo enche sempre. Até logo».
Sentada no fim duma mesa corrida, e frente a uma parede cheia de fotos de jogadores e equipas do Belenenses, queria ver como se sentia o Bernardo naquele ambiente de restaurante muito bom, mas de bairro. Encostou-se à parede, pediu um vermute seco, acendeu um cigarro e fixou os olhos na porta de vidro e alumínio. O princípio do futuro tinha que entrar por aquela porta.