Notas sobre a questão da bolha imobiliária em Portugal

Sequeira

A partir do início da dé­cada de 90 – e num pro­cesso sempre em ace­le­ração até 2002, e que, só agora, em plena agu­di­zação da crise, co­meça a de­sa­ce­lerar – o grande ca­pital en­con­trou no sector imo­bi­liário uma nova e im­por­tante área de in­ter­venção.

Como é co­nhe­cido, para isso con­tri­buiu, no fun­da­mental, e a partir de cerca de meio do pe­ríodo, a des­cida das taxas de juro após a adesão ao euro.

Foram ac­tores pri­vi­le­gi­ados desta cor­rida a um novo el­do­rado da eco­nomia na­ci­onal desde logo o sis­tema fi­nan­ceiro, mas também, em­bora em menor es­cala, os pro­mo­tores imo­bi­liá­rios e as em­presas de cons­trução civil de média e grande di­mensão e as pró­prias au­tar­quias – cujo es­tran­gu­la­mento fi­nan­ceiro as em­purrou para este tipo de re­ceitas. Também assim foi porque quase 99 % dos edi­fí­cios foram e são pro­mo­vidos por pri­vados, dado o papel in­sig­ni­fi­cante do Es­tado e das co­o­pe­ra­tivas, nos úl­timos anos, neste sector.

Em Março de 2011, exis­tiam em Por­tugal 5 879 845 fogos, dos quais 1 505 662 eram fogos novos cons­truídos entre 1991 e 2009; isto é, nos úl­timos 19 anos, cons­truíram-se pelo menos 25,6 % do total de fogos ac­tu­al­mente exis­tentes em Por­tugal.

En­quanto que na dé­cada de 80 foram cons­truídos, em média, cerca de 28 mil fogos por ano, este nú­mero chega aos 64 mil entre 90 e 97 e aos 92 mil entre 97 e 2009, atin­gindo va­lores mé­dios su­pe­ri­ores a 118 mil entre os anos de 1999 e 2003, com um pico em 2002, de 130 mil fogos cons­truídos. A tudo isto há que acres­centar cen­tenas de mi­lhares de m2 de es­cri­tó­rios.

Va­lores ab­so­lu­ta­mente ini­ma­gi­ná­veis, pois di­versos es­pe­ci­a­listas en­tendem que o nú­mero de ha­bi­ta­ções novas a cons­truir, tendo em vista o cres­ci­mento das fa­mí­lias e al­guma re­po­sição do parque por en­ve­lhe­ci­mento, não de­verá ul­tra­passar as 30 mil por ano, o que sig­ni­fica que entre 1991 e 2009 se terá cons­truído quase um mi­lhão de fogos para além das ne­ces­si­dades.

Esta po­lí­tica de ver­da­deiro de­sastre na­ci­onal, do tudo à es­pe­cu­lação imo­bi­liária, que deu uma apa­rência de saúde e de algum di­na­mismo à eco­nomia por­tu­guesa até ao início do sé­culo, apre­sentou e apre­senta as­pectos pro­fun­da­mente con­tra­di­tó­rios e pe­ri­gosos, pois que des­viou verbas imensas ne­ces­sá­rias ao in­ves­ti­mento pro­du­tivo – du­rante duas dé­cadas, mais de 150 mil mi­lhões de euros – par­ti­cu­lar­mente de bens tran­sac­ci­o­ná­veis, con­duziu ao en­di­vi­da­mento das fa­mí­lias – se­gundo o BP este era de 5,8 mil mi­lhões em De­zembro de 1990, de 50 mil mi­lhões em 2000 e de 122 mil mi­lhões em Maio de 2010 (cerca de 70,5 % do PIB do ano) –, ao en­di­vi­da­mento do sis­tema fi­nan­ceiro pe­rante a banca es­tran­geira – o prin­cipal mo­tivo da dí­vida ex­terna não pú­blica, si­tu­ação por nós di­ag­nos­ti­cada há já al­guns anos e con­fes­sada muito re­cen­te­mente por im­por­tantes ban­queiros por­tu­gueses em en­tre­vista dada a um jornal diário –, e o en­di­vi­da­mento de muitas e muitas em­presas de cons­trução pe­rante a banca.

Esta po­lí­tica de sui­cídio ainda não parou, pois ainda em 2009, já em pleno agu­dizar da crise, ainda foram con­cluídos cerca de 69 mil fogos. Mas mais grave ainda, e aten­dendo ao in­ter­valo de tempo, vá­rios anos, que me­deia entre a de­cisão de in­ves­ti­mento e a cons­trução e a sua con­clusão, em 2008 ainda foram emi­tidas mais cerca de 28 mil e em 2009 cerca de 21 mil li­cenças para cons­trução de novos fogos.

In­de­pen­den­te­mente da enorme pressão exer­cida sobre as fa­mí­lias para a aqui­sição de casa pró­pria – as novas frac­ções, a par das an­tigas não ven­didas e de ou­tras vagas, que no seu con­junto atingem cerca de um mi­lhão de casas de­vo­lutas –, a di­fe­rença entre a pro­dução e a pro­cura foi au­men­tando, atin­gindo o nú­mero de casas não ven­didas va­lores as­sus­ta­dores, que era em 2007 cerca de 550 a 650 mil, isto num país que, con­tra­di­to­ri­a­mente, tem mi­lhares de pes­soas a viver em ina­cei­tá­veis con­di­ções de ha­bi­ta­bi­li­dade.

Estes va­lores serão ac­tu­a­li­zados após a pu­bli­cação da versão de­fi­ni­tiva do Censos 2011. De acordo com o Censos de 2001, es­tavam vagos 10,8 % dos alo­ja­mentos exis­tentes à data, ou seja, cerca de 522 mi­lhares de fogos.

No quadro de uma con­fe­rência re­a­li­zada pelo jornal Ex­presso em Se­tembro do ano pas­sado, se­gundo al­guns es­pe­ci­a­listas aí pre­sentes, o valor das casas de­vo­lutas de­veria atingir à data os 100 mil mi­lhões de euros, ou seja, cerca de 58 % do PIB de 2010.

En­quanto que entre 2001 e 2011 o nú­mero de fogos cresceu cerca de 16 %, o nú­mero de fa­mí­lias, cresceu 12 % no mesmo pe­ríodo. Como se ve­ri­fica, existe um di­fe­ren­cial de 4% entre as taxas de cres­ci­mento das duas va­riá­veis, pelo que o ex­cesso de novas casas é se­gu­ra­mente su­pe­rior a este valor, dado que muitas das novas fa­mí­lias con­ti­nuam a viver em casa de fa­mi­li­ares.

Este pro­cesso de pro­dução ir­ra­ci­onal de ha­bi­tação nova – ao mesmo tempo que existem cen­tenas de mi­lhares de edi­fí­cios a exigir re­a­bi­li­tação – para além de con­sumir bru­tais meios fi­nan­ceiros, con­some um bem único e es­casso que é o solo, em con­tra­cor­rente com teses ur­ba­nís­ticas já com al­guns anos, en­cerra em si mesmo pe­rigos imensos, cons­ti­tuindo uma ver­da­deira bomba-re­lógio que pode ser ace­le­rada pelo agu­dizar da crise nas ac­tuais cir­cuns­tân­cias.

A cor­rente de pen­sa­mento do­mi­nante afirma, con­tra­ri­a­mente ao que ocorreu nou­tros países – Es­panha, Ir­landa, Grã-Bre­tanha, EUA, etc.– que em Por­tugal não há ne­nhuma bolha imo­bi­liária, ba­seada no facto de, em Por­tugal, os preços não terem su­bido tanto, para além do «justo valor» de mer­cado, quanto nesses países.

Esta é uma tese que está por de­mons­trar e da qual se deve dis­cordar to­tal­mente, pois que os in­di­ca­dores já atrás apre­sen­tados – enorme stock de fogos vagos, enorme en­di­vi­da­mento en­tre­tanto as­so­ciado à cres­cente in­sol­vência de muitas fa­mí­lias, en­di­vi­da­mento e in­sol­vência de muitos pro­mo­tores imo­bi­liá­rios e de muitas em­presas de cons­trução civil (são mi­lhares de micro, pe­quenas e mé­dias em­presas de cons­trução civil fa­lidas ou en­cer­radas), corte brutal nos em­prés­timos ban­cá­rios e perda de li­quidez do sis­tema ban­cário – são ele­mentos mais do que se su­fi­ci­entes para sus­tentar a eclosão de uma crise pro­fun­dís­sima em cima do pano de fundo da pre­e­xis­tente.



Mais artigos de: Argumentos

Sururu I

Fez algum sururu pela direita em geral – Surpreendidos com este «murro no estômago» (palavras do primeiro-ministro Passos Coelho) vindo de uma das tão incensadas e indiscutíveis agências de notação (que, já agora, «fez descer» os bancos...

Os bons sentimentos

Que a memória de Vinicius de Morais me absolva da tentação de lhe seguir toscamente as palavras: os inteligentes que me perdoem, mas as raízes são fundamentais. É que, estando diante do televisor a ouvir um sujeito inegavelmente inteligente, julgo aperceber-me facilmente de que...

Na hora do pensar e do agir

«O marxismo, longe de pregar a perseguição, enriquece, pelo contrário, a tolerância com uma nova dimensão. A tolerância não é só o consentimento das diversas ideologias. É também pesquisa de unidade prática na acção....