Às ordens de Suas Excelências
A informação caiu-me no prato de sopa enquanto almoçava: o Governo preparar-se-á para eliminar entre 1000 e 1500 Freguesias por esse Portugal afora. Quem me deu a notícia foi a SIC que, ao que disse, a leu no diário «I», seguindo mais uma vez o generalizado método de investigação telejornalística que consiste em ler a imprensa diária no aconchego da redacção em vez de andarem os jornalistas ou equiparados a calcorrear o País, à chuva e ao vento ou aos ardores estivais, em busca de notícias. E mais disse a SIC: que a extinção de tanta autarquia de base, chamemos-lhe assim se ninguém se importa, é uma das exigências impostas pela famigerada troika euroamericana e constante do programa aceite e subscrito pela troika lusa com vista ao objectivo já habitual de diminuir despesas, impor austeridade, juntar mais uns patacos que ajudem ao pagamento da dívida ou, pelo menos, dos respectivos juros contados a taxas com dois dígitos, isto é, dignos de qualquer usurário sem princípios mas com fins. Não imagino se a projectada medida resultará em significativa economia financeira ou sobretudo em quantos incómodos mais para as populações a quem as juntas de Freguesia prestam alguns serviços. Mas a dúvida é irrelevante, bem o compreendo. As populações estão aí exactamente para serem incomodadas, para terem o seu quotidiano cada vez mais difícil, e, por outro lado, a troika, bicho tricéfalo que se deu ao trabalho de vir de longe para dar as suas ordens, está lá para ser obedecido. Como todos os dias é repetido em diversos tons e sob diversas fórmulas que disfarcem um pouco a verdade, o único grande desígnio nacional é hoje estar às ordens de Suas Excelências, os interesses financeiros internacionais.
Ah, as pessoas!
Não informou a SIC, nem provavelmente informará o «I», se o Governo já conversou com a Anafre acerca desta projectada execução sumária. Como se sabe, a Anafre é o órgão representativo de todas as freguesias do País, pelo que pelo menos uma consulta anterior ao compromisso de extinção seria um passo obviamente democrático. Repare-se: as juntas de Freguesia não são repartições públicas criadas pelo capricho deste ou daquele governo, são órgãos que emergem do voto dos cidadãos. Sabe-se, é claro, que os governos, este e anteriores, se habituaram à ideia de que despedir gente e eliminar funções é coisa que depende apenas da vontade governativa, se não dos humores dos governantes habituados a agirem como patrões que exercem a sua vontade sobre trabalhadores com escassos ou nenhuns meios de defesa. Porém, as juntas de Freguesia são outra coisa, têm uma legitimidade democrática que ultrapassa o órgão propriamente dito para se alargar a cada autarca. Admite-se, é certo, que a extinção ordenada pela excelentíssima troika possa aguardar o fim dos mandatos em curso. Acontece, porém, que nem tudo são apenas autarcas nas instalações das juntas de Freguesia; não talvez em todas elas mas decerto numa sua grande parte, mesmo que consideremos apenas as de menor dimensão: há funcionários, trabalhadores que ali ganham a vida e cuja actividade é útil e necessária às populações. Adivinha-se quais poderão ser as ordens da troika quanto a estas pessoas (aliás, as pessoas são sempre um pormenor desagradável para as troikas que por esse mundo abundam): – Ponham-nas na rua! E aí estará a austeridade a afirmar-se sob a forma de economia de custos. Serão talvez os famosos «despedimentos por mútuo acordo» ou, na alternativa, passagens antecipadas a reformas de valor miserável. Também quando, em plena escuridão de um assalto nocturno, o assaltado opta por entregar carteira e relógio ao assaltante armado de faca ou pistolão se pode talvez falar, usando eufemismo igual ou aparentado, de «mútuo acordo». É nesse espírito que estamos agora no nosso País em matéria de «emagrecimento dos custos salariais». Há quem não goste, é claro, mas é inevitável. Porque estamos às ordens de Suas Excelências. Quanto à extinção do tal milhar ou milhar e meio de Freguesias, e portanto das respectivas juntas, seria talvez interessante comparar a poupança assim obtida com o volume dos gastos havidos com a intervenção portuguesa em teatros de guerra onde ninguém dá por nós e onde, aliás, bem melhor seria que portugueses armados não pusessem os pés. Isto é, as botas. Mas o Governo não estará inclinado a optar pela transparência que esse confronto consubstanciaria.