Uma desgraça nunca vem só

Francisco Mota

Para os que andam pelo mundo aos tombos

Estava na China, para um tratamento médico, e tinha que sair e voltar a entrar por razões burocráticas locais. O mais barato era ir à Coreia do Sul, onde não pedem visto e são só noventa minutos de voo. Lá comprei o bilhete aproveitando os três dias de feridos do 1.º de Maio na China, e lá arranjei um bonito hotel junto ao aeroporto, pela internet.

Tudo parecia correcto. Mas logo à partida havia atrasos e toca a esperar. Depois lá entramos. Avião cheio. O lugar que me calhou era para pessoas pequenas, suponho que até aos dez anos de idade. Joelhos no queixo e paciência. Chegámos, vento e frio, até que me levaram ao hotel, que era como na foto, menos uma linha de comboio supermoderno que estão a fazer no nariz do hotel. Na recepção falavam um inglês turbulento, além de, suponho, um correcto coreano.

Já no quarto, reparo que não há cadeira onde sentar-me, não há onde pendurar o casaco, não há mesa de cabeceira, o frigorífico tem duas garrafinhas de água potável, já que a da torneira não o é. A casa de banho, duns dois metros quadrados, albergava lavatório, sanita e duche num exercício de arquitectura que teria merecido um chumbo enorme em qualquer escola do mundo. Para tomar banho, havia que saltar sobre a sanita. Por tudo isto, este vosso tonto amigo estava a pagar uns 120 euricos por noite.

Comer. Ora aí está uma necessidade de todo o ser humano, que nem todos conseguem cumprir, infelizmente. Eu, sem me considerar destes, também o quis fazer, mas não pude, porque num hotel que se abastece de clientes de passagem entre avião e avião, o restaurante estava fechado até às sete. Comecei a lembrar-me do pedaço de mau pão que não tinha comido no avião. Tinha que esperar. Às sete em ponto, lá estava eu, recebido com um sorriso e preparado para esquecer tudo. Sentei-me e comecei o passeio pelo buffet, só que este era minúsculo e quase só constituído por ervas cruas ou meio cozidas, umas mini sandes também de ervas e umas sopas que não confessavam do que eram. Provei das duas e continuo sem saber. Bebida: água ou uns sumos de pacote. Comida coreana? Pois nada de nada. Perguntei se era tudo e disseram-me que aquilo era o anti-pasti e que podia escolher o segundo prato. Vi a carta e reparei que só tinha três pratos: bife, salmão e costeletas de borrego (duas, estava escrito). Além disso pagava-se à parte. A menina informou-me que o bife, que pedi, era pequenino. Ora bem, assim não há surpresas! Cheguei ao fim, dá para cá mais uns 40 euros e boa noite. Garanto que, se houvesse nas redondezas um burguer desses de comida-lixo, tinha lá ido e que deus me perdoasse. Nem isso havia.

Na manhã seguinte, depois de um acrobático duche, voltei aliviado ao aeroporto e à China. Sentia-me no paraíso, até chegar a casa onde vi e soube que não havia eletricidade, nem água desde manhã. Eu morava num 11.º andar e não me passava pela cabeça subir a pé. Desanimado, com a alma de rastos fui a um mini mercado para comprar uma bebida que estivesse fresca. Olhava e escolhi uma ao acaso. Sabia a baunilha, ingrediente que não constava na lata escrita em chinês e inglês. Maravilhas da tecnologia alimentar. Sentei-me, com a mala ao lado, numa mesa com duas cadeiras que me pareceram o melhor sofá do mundo e fui visitado novamente pelo diabo que se tinha apaixonado pela minha alma. Repetia-me: bebe uma coca-cola!!!! E eu resistindo, como o outro santo no deserto, gritei-lhe: Vade retro, Satanás!!. Não percebeu. Era um diabo chinês.

Finalmente veio a luz. Lá subi, deitei-me e depois liguei o computador para aceder à internet. Não havia internet. Telefonei, protestei e no dia seguinte à tarde lá se normalizou tudo.

Pus-me a ver os mails da família, dos amigos e outra informação em geral. Dei com um documento de 34 páginas assinado por duas troikas, uma estrangeira e outra dum tal PS-PPD-CDS. Diziam que estavam a salvar Portugal. Desconfiei. Os outros eram o velho conhecido FMI, mais o BCE e uma tal UE. Todos amigos, todos. Muito nossos amiguinhos. Não percebi porque é que os bancos portugueses não assinaram em vez dos três partidos. Poupava-se tempo, acho eu.

Depois vieram-me outra vez as preocupações, quando percebi que era, uma vez mais o povo trabalhador e o povo desempregado que ia pagar todo aquele dinheiro. Li outra vez o documento e fiquei com dúvidas: será que a traição, o roubo e a corrupção, descontam no IRS? Será que a amizade e o amor, a igualdade e a solidariedade vão pagar IVA? E, a maior de todas: será que a saudade vai começar a pagar imposto? É que tenho muitas saudades de ser dum país decente.



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