Soares e o paradigma

Anabela Fino

Se bem se lembram tempos houve em que Mário Soares pregava para quem o queria ouvir as virtualidades do «socialismo democrático», cujo era assim uma espécie de supra-sumo da social democracia antes de esgotado o prazo de validade. Mais tarde, como também não faltará quem se recorde, o «socialismo» foi metido na gaveta por força das «circunstâncias» e por lá ficou a aboborar até hoje, paulatinamente substituído pelo «pragmatismo» do mercado comum que havia de ser – garantiam-nos – o húmus fértil da construção europeia que realizaria o seu desígnio de progresso, desenvolvimento e solidariedade na Europa dos cidadãos, assim houvesse coragem e determinação em avançar com políticas comuns aos mais diversos níveis. Volvido um quarto de século há que reconhecer que se «avançou», mas com resultados tais que já nem Soares vislumbra luz ao fundo do túnel.

Comentando esta semana a «questão do Orçamento», o ex-secretário-geral do PS classifica o documento como «uma bomba ao retardador» que vai ter consequências imprevisíveis no plano social, tal a brutalidade das medidas que contém. A culpa não é de Sócrates, garante Soares, lembrando que o primeiro-ministro até disse, «com sinceridade», que algumas das medidas até «cortam o coração».

Mas deixemos por agora o coração partido de Sócrates e vejamos a quem aponta Soares o dedo acusador. O Orçamento, assevera, «foi-nos imposto pelo Banco Central Europeu» – não se sabe se com o coração destroçado, dizemos nós – mas sem margem para dúvidas pressionado pelos mercados, que são «insaciáveis». De acordo com Soares, tal facto resulta «da ideologia neoliberal, que transformou os mercados – que ninguém sabe o que são e quem os comanda – e os pôs no centro da tudo: das sociedades, da política, da ética e das próprias pessoas» (sic).

Como obviamente esta afirmação não pode ser levada à letra – nem a reconhecida «lata» de Soares chega a tanto – resta-nos aferir daquelas palavras que o fundador do PS esperava encontrar no aprofundamento da integração europeia, que sempre defendeu e aplaudiu, um capitalismo que explorasse sim, mas com jeitinho. Não sendo o caso, o que nos resta? Ceder, evidentemente, já que para Soares não há alternativa à aprovação do Orçamento e os «protestos da esquerda radical», como lhe chama, são «simpáticos» para os injustiçados mas não passam disso. Caso essa esquerda chegasse ao poder pelo voto popular – hipótese absurda, diz o «pai da democracia» –, a alternativa seria o regresso ao «orgulhosamente sós» de Salazar ou «um modelo económico tipo cubano». Como se a ditadura fascista não tivesse contado sempre com o inestimável apoio do capitalismo europeu e americano, e como se o modelo cubano, que no entender de Soares é sinónimo de «miséria extrema», não resistisse há quase meio século às pressões do imperialismo americano.

Soares, que diz não gostar das «receitas» do Banco Central Europeu e temer que as mesmas levem «à recessão e à decadência» e mesmo à «desintegração» da União Europeia, só tem uma receita para o desastre: nada de lutas a nível nacional, o que é preciso é mudar de «paradigma» a nível europeu. Eis Soares na campanha para o «capitalismo de rosto humano».



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