Palavras e palavrões

Anabela Fino

Nascer numa casa cheia de li­vros e con­viver desde a mais tenra idade com bi­bli­o­tecas, dentro e fora de casa, e trans­mitir esse le­gado aos des­cen­dentes não nos põe ao abrigo, ao con­trário do que se po­deria supor, de ig­no­rân­cias vá­rias. Por exemplo, só re­cen­te­mente dei conta de que aqueles di­ci­o­ná­rios de co­lo­ridas capas que todos os anos, por oca­sião do re­gresso às aulas, apa­recem nos es­ca­pa­rates das li­vra­rias e dos cen­tros co­mer­ciais não são todos iguais. Acre­di­tava eu, na minha in­ge­nui­dade, que um di­ci­o­nário de por­tu­guês de capa azul em nada se dis­tin­guia em termos de con­teúdo de um di­ci­o­nário de por­tu­guês da capa la­ranja, e que as di­fe­rentes ver­sões ao dispor do pú­blico se pau­tavam, mais do que pela di­fe­rente co­lo­ração, pela di­fe­rença de preço, con­forme dis­po­ni­bi­li­zavam aos pu­ta­tivos utentes um maior ou menor nú­mero de vo­cá­bulos da língua pá­tria. A ló­gica, em termos eco­no­mi­cistas, acre­di­tava eu, seria a de que os alunos do pri­meiro ou do se­gundo ciclo «não pre­cisam» de uma en­ci­clo­pédia para des­co­brir (aprender?) a ri­queza da sua língua, e que, sendo curto o di­nheiro das fa­mí­lias, ao invés de se lhes exigir um in­ves­ti­mento avul­tado de uma só vez, se lhes «per­mitia» que o fossem fa­zendo às mi­ji­nhas (perdoe-se o termo, que existe e nem chega a ser ver­ná­culo). Contas feitas, é bem capaz de se chegar à con­clusão de que a compra su­ces­siva de ver­sões mais com­pletas de di­ci­o­ná­rios até fica mais dis­pen­diosa, mas isso só com­prova que os po­bres, jus­ta­mente porque o são, pagam sempre tudo mais caro. Adi­ante.

A coisa não se re­sume a isto, como agora tive opor­tu­ni­dade de com­provar. Entre o di­ci­o­nário la­ranja e o di­ci­o­nário azul (as cores podem não ser estas, mas para o caso tanto faz) há afinal uma di­fe­rença de monta, cuja ra­dica na ori­en­tação (pre­sume-se que su­pe­rior) de gra­duar o acesso dos in­fantes aos vo­cá­bulos da língua ma­terna con­so­ante pro­gridem pelos di­fe­rentes graus de en­sino. Como se para chegar à pa­lavra «carro» as nossas cri­anças ti­vessem obri­ga­to­ri­a­mente de co­meçar por dizer «pó-pó», não fosse o termo atro­pelar-lhes as tenras me­ninges. Mul­ti­plique-se os exem­plos, a co­meçar pela de­sig­nação «cor­recta» das partes do corpo e a ter­minar na di­ver­si­dade de termos usados na lin­guagem po­pular para as mesmas – e que os di­ci­o­ná­rios evi­den­te­mente in­cor­poram – e temos a di­mensão do «es­cân­dalo» vindo a pú­blico um destes dias quando se des­co­briu que, por opção ou por um en­gano fatal na se­lecção das cores, al­gumas es­colas in­di­caram di­ci­o­ná­rios «im­pró­prios» para os alunos mais jo­vens.

Não caiu o Carmo e a Trin­dade mas quase. A Con­fe­de­ração Na­ci­onal das As­so­ci­a­ções de Pais veio a pú­blico ma­ni­festar a sua in­dig­nação com um ar­gu­mento cu­rioso. «É uma ri­queza tí­pica de um país pobre que as es­colas adoptem um di­ci­o­nário tão com­pleto», disse a pro­pó­sito Al­bino Al­meida, em de­cla­ra­ções ao DN, ofen­dido com os «pa­la­vrões» postos ao al­cance dos alunos, via di­ci­o­nário. A his­tória fez-me lem­brar os tempos em que es­tu­dá­vamos Os Lu­síadas com a in­di­cação ex­pressa do pro­fessor de que a parte da Ilha dos Amores nos es­tava in­ter­dita... Pelos vistos ainda há quem pre­fira pregar a santa ig­no­rância em vez de apostar num en­sino res­pon­sável.



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