Palavras e palavrões
Nascer numa casa cheia de livros e conviver desde a mais tenra idade com bibliotecas, dentro e fora de casa, e transmitir esse legado aos descendentes não nos põe ao abrigo, ao contrário do que se poderia supor, de ignorâncias várias. Por exemplo, só recentemente dei conta de que aqueles dicionários de coloridas capas que todos os anos, por ocasião do regresso às aulas, aparecem nos escaparates das livrarias e dos centros comerciais não são todos iguais. Acreditava eu, na minha ingenuidade, que um dicionário de português de capa azul em nada se distinguia em termos de conteúdo de um dicionário de português da capa laranja, e que as diferentes versões ao dispor do público se pautavam, mais do que pela diferente coloração, pela diferença de preço, conforme disponibilizavam aos putativos utentes um maior ou menor número de vocábulos da língua pátria. A lógica, em termos economicistas, acreditava eu, seria a de que os alunos do primeiro ou do segundo ciclo «não precisam» de uma enciclopédia para descobrir (aprender?) a riqueza da sua língua, e que, sendo curto o dinheiro das famílias, ao invés de se lhes exigir um investimento avultado de uma só vez, se lhes «permitia» que o fossem fazendo às mijinhas (perdoe-se o termo, que existe e nem chega a ser vernáculo). Contas feitas, é bem capaz de se chegar à conclusão de que a compra sucessiva de versões mais completas de dicionários até fica mais dispendiosa, mas isso só comprova que os pobres, justamente porque o são, pagam sempre tudo mais caro. Adiante.
A coisa não se resume a isto, como agora tive oportunidade de comprovar. Entre o dicionário laranja e o dicionário azul (as cores podem não ser estas, mas para o caso tanto faz) há afinal uma diferença de monta, cuja radica na orientação (presume-se que superior) de graduar o acesso dos infantes aos vocábulos da língua materna consoante progridem pelos diferentes graus de ensino. Como se para chegar à palavra «carro» as nossas crianças tivessem obrigatoriamente de começar por dizer «pó-pó», não fosse o termo atropelar-lhes as tenras meninges. Multiplique-se os exemplos, a começar pela designação «correcta» das partes do corpo e a terminar na diversidade de termos usados na linguagem popular para as mesmas – e que os dicionários evidentemente incorporam – e temos a dimensão do «escândalo» vindo a público um destes dias quando se descobriu que, por opção ou por um engano fatal na selecção das cores, algumas escolas indicaram dicionários «impróprios» para os alunos mais jovens.
Não caiu o Carmo e a Trindade mas quase. A Confederação Nacional das Associações de Pais veio a público manifestar a sua indignação com um argumento curioso. «É uma riqueza típica de um país pobre que as escolas adoptem um dicionário tão completo», disse a propósito Albino Almeida, em declarações ao DN, ofendido com os «palavrões» postos ao alcance dos alunos, via dicionário. A história fez-me lembrar os tempos em que estudávamos Os Lusíadas com a indicação expressa do professor de que a parte da Ilha dos Amores nos estava interdita... Pelos vistos ainda há quem prefira pregar a santa ignorância em vez de apostar num ensino responsável.