O dever de dizer «não»

Correia da Fonseca

Olha-se o ecrã do televisor, dia após dia, não já na expectativa de encontrar informações de facto esclarecedoras acerca do País e do mundo mas antes, numa espécie de caça às manipulações e imposturas, para de entre elas detectar a mais grave, a que porventura mais importe desmascarar e denunciar. Há qualquer coisa de perverso neste jogo quotidiano: nem a televisão foi inventada como instrumento óptimo para enganar as gentes, nem a chamada crítica de TV nasceu tendo como destino quase exclusivo a tarefa tendencialmente policiesca de perseguir o crime desinformativo. De qualquer modo, esta já não é uma situação nova e surpreendente: já há bem mais que duas décadas, um ensaísta alemão escreveu que a tarefa da crítica de televisão se assemelhava à do operário que trabalha na manutenção e limpeza do saneamento básico, e então ainda parecia que estávamos no bom tempo em que o projecto de uma televisão asseada e útil parecia possível a prazo relativamente curto. Agora, o resgate da televisão parece mais difícil: as garras dos grandes interesses cravaram-se-lhe mais fundo, a consecução de uma sociedade diferente em alternativa à barbárie tecnicamente sofisticada parece ir demorar mais do que se supunha há anos atrás. Mas é preciso olhar para lá das quatro paredes que efectiva ou metaforicamente nos cercam: o mundo é bem mais amplo, há gentes lúcidas e decididas um pouco por todo o lado, a dinâmica das mudanças não pára a olhar nenhum televisor aldrabão. E, já agora, convém não esquecer que o televisor é muito capaz de nos mentir ou, em menos pesada hipótese, de nos induzir a seguir pistas falsas, mesmo fora dos chamados serviços informativos: olha-se as telenovelas embaladoras ou teleficções equivalentes e, salvo raras excepções, o mundo ou o país em que elas decorrem não tem qualquer parentesco próximo com o real quotidiano em que as populações pobres se angustiam para sobreviver, em que os trabalhadores são esbulhados de parte dos seus salários para que alguns pratiquem a suposta generosidade de «manter os postos de trabalho», em que desempregados são empurrados para a tentação da marginalidade pela penúria que lhes foi imposta e pelos sempre regateados «apoios sociais» sempre insuficientes.

 

De longe em longe, a dúvida

 

Entenda-se que nada disto implica uma condenação de raiz deontológica ditada sobre quem trabalha nas estações de televisão. Salvo situações extremas a reclamar análises mais severas, trabalha-se onde se pode e não onde se quer, executa-se a tarefa que nos é distribuída e não a que gostaríamos de ter escolhido. Mas esta reflexão de justiça e bom senso não acrescenta nem retira nada ao impacto de facto negativo que a generalidade dos actuais conteúdos da televisão, ou pelo menos os que sendo mais promovidos pela publicidade directa ou indirecta ganham maior audiência, tem sobre os cidadãos telespectadores: sobre as suas mundividências, sobre os seus entendimentos, sobre as suas opções. Quanto à crítica da televisão, isto é, à crítica dos seus conteúdos e formas, está obviamente encurralada numa situação de impotência, obviamente desconfortável, e num estatuto de não reconhecimento por parte de quem supostamente a deveria acolher. É assim que o sentimento de alguma de inutilidade pesa sobre os que talvez em vão investem horas e horas diante de imagens e sons que muitas vezes os agridem e, no mínimo, quase sempre os desgostam. Escrevem, é certo, mas quase exclusivamente para serem lidos pelos que têm opiniões semelhantes às suas, o que mais uma vez resulta no tal sentimento de frustração. É então quase inevitável que, pelo menos de longe em longe, se perguntem se vale a pena. E, complementarmente, se interroguem sobre a futura continuidade, com outros olhos e outras palavras, desse esforço de denúncia de um crime verdadeiramente público mas impune. Acontece, então, que do fundo de uma antiga convicção emerge o que parece ser uma resposta: que um dever é um dever muito para lá do balanceamento contabilístico da eventual eficácia do seu cumprimento. E que, no caso, se trata do dever de dizer «não» à mentira e manipulação permanentes, prosseguindo aliás um trabalho como que herdado de melhores mãos.



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