Ilusões e mentiras do «combate à pobreza»
A Igreja Católica montou no plano social uma autêntica máquina devoradora.
Para justificar este reparo basta folhear as páginas da sua história mais recente. Porque um século, no correr dos tempos – e diga-se o que se disser – quase que apenas faz mudar nas instituições apenas as aparências.
Em plena «Revolução Industrial», o Vaticano permanecia mudo perante os crimes praticados pelo patronato. Os sentimentos de revolta alastravam entre a multidão dos explorados. O exército dos desempregados engrossava a olhos vistos. Os ricos viviam uma vida faustosa e troçavam dos oprimidos. Estes, manifestavam-se espontaneamente mas as revoltas dos pobres careciam de uma organização revolucionária que sistematizasse os seus actos de revolta e fizessem vergar o poder dos tiranos.
Nestes quadros, surgiu em 1847 o Manifesto Comunista. O alarme soou no mundo capitalista. Governos ultra-reaccionários e Vaticano sentiram-se ultrajados. Os pigmeus ousavam desafiar os colossos. De imediato, subiram de tom e de força as lutas entre classes. Mas se o patronato tinha comportamentos desvairados, não sabia aprender com a História e mostrava não dispor de propostas alternativas. Pelo contrário, a Igreja conservava a cabeça fria.
Em 1891, quase cinquenta anos passados sobre o Manifesto, o Papa Leão XIII divulgou a encíclica Rerum Novarum, a primeira carta pontifícia centrada na chamada «questão operária». Depois, ao longo dos anos mas em sucessão contínua, foram publicados dezenas de documentos apostólicos rubricados pelos papas que sucederam a Leão XIII. Todos eles mudavam a gramática ou a forma de comunicar mas mantinham os mesmos objectivos e um mesmo núcleo central teológico com carácter de dogma. Capitalismo bom ou capitalismo mau, mas sempre capitalismo.
Em 1981, todos estes documentos foram compilados e publicados como conjunto orgânico central dos ensinamentos da Igreja sobre os problemas sociais - a «Doutrina Social da Igreja». Dali por diante, o catolicismo ficava dotado de uma única carta de princípios no vastíssimo campo pastoral.
Os avanços teóricos neste universo social de que dependem pobres, velhos, jovens, deficientes, emigrantes, minorias marginalizadas, pequenos e médios produtores, etc., teriam de ser acompanhados, evidentemente, por alterações profundas na forma como a Igreja interviesse no terreno. Assim, em poucos decénios tudo se transformou. As Misericórdias medievais caducas modernizaram-se, à imagem das sociedades neoliberais fundiram-se ou formaram redes, especializaram-se e aproximaram-se dos poderes laicos cujos aparelhos acabaram por controlar. Criou-se em todo o mundo milhares e milhares de ONG's, de fundações e de instituições católicas financeiras, a pretexto da expansão da Fé, da Solidariedade entre os homens, da unidade da Família, do combate à pobreza e da Caridade cristã. Mais parecia que o Vaticano conseguira conciliar o conciliável com o inconciliável: a caridade cristã que prega o amor ao próximo e a sede inesgotável de lucro que caracteriza o capitalismo.
A partir de aí, rios de dinheiro na forma de incentivos e de subsídios não cessaram de correr dos cofres públicos para as organizações não lucrativas católicas. Neste aspecto, o Vaticano soube «dar a volta» a questões graves que se arrastavam no interior da Igreja desde as nacionalizações de bens das Ordens Religiosas, na primeira fase do liberalismo. Lucros materiais a que se somaram outros em contrapartidas, menos visíveis mas de não menor importância. Sempre ao lado do poder político e capitalista das grandes fortunas, a Igreja ganhava, por isso mesmo, crescente participação nas decisões de fundo do capitalismo orientado para a Globalização. Simultaneamente, chamava a si o reconhecimento e a simpatia dos pequenos mas bem situados segmentos da população aos quais a acção caritativa ajudava a sobreviver. Uma estratégia que aliás vem de longe, dos tempos da velha Acção Católica, mas sofreu na sua formulação profundas mudanças, à escala das formações empresariais da sociedade global. Se antigamente a caridade era assunto pessoal, princípio expresso de cada instituição ou posição espontânea das comunidades, todo esse universo se hierarquizou, organizou segundo um só padrão e se sagrou como princípio teológico. A caridade prepara os fundamentos da nova era cristã que por aí vem. Por isso, decisões das ONG's, IPSS ou Fundações, tudo passa pelas estruturas intermédias, pelas conferências episcopais nacionais ou pelos dicastérios (ministérios) pontifícios. Só para exemplificar o que tudo isto significa do ponto de vista da centralização do poder eclesiástico: suponhamos que uma certa decisão de eventual projecção no plano social é tomada pela Mesa de uma Misericórdia. Antes que «suba», ela será seguramente analisada pelos órgãos competentes da União das Misericórdias, das Confederações da Acção Social, do Secretariado da Acção Social e Caritativa, da Comissão Justiça e Paz, das Comissões Pontifícias, da Cúria Romana etc., todos membros da Conferência Episcopal Portuguesa. Se antigamente a multiplicidade dos centros de decisão instalavam a demora e a confusão, a actual informática torna tudo mais fácil e eficiente através do cruzamento de dados. O Vaticano não recebe lições de ninguém em matérias de sociologia política. Escuta todas as sugestões mas é o Papa quem decide, exactamente como nos tempos medievais.