Os crimes de «luva branca» e sotaina…

Jorge Messias

Poucos meses antes do fa­le­ci­mento do p. Ma­ciel, Bento XVI afastou-o im­pre­vis­ta­mente de todos os cargos e or­denou um inqué­rito in­terno ao pas­sado do sa­cer­dote. O Va­ti­cano aca­bara por «des­co­brir» aquilo que de há longa data co­nhecia:

o sa­cer­dote ti­vera uma car­reira ilus­trada pelas mais di­versas prá­ticas cri­mi­nosas. Fora pe­de­rasta, la­drão, mor­fi­nó­mano e vi­o­lador de cri­anças na sua pró­pria fa­mília. Ne­go­ciara com má­fias de todos os gé­neros. Es­ta­be­le­cera pactos com as redes de nar­co­trá­fico me­xi­canas.

Para os que ob­servam a Santa Sé e pro­curem chegar às re­a­li­dades que os seus longos cor­re­dores ocultam, há factos es­sen­ciais em toda esta his­tória que im­porta des­tacar. Mar­ciel, se­mi­na­rista obs­curo, fora o homem es­co­lhido pela Igreja para pôr de pé o am­bi­cioso pro­jecto da «Le­gião de Cristo». A es­colha foi ava­li­zada pelos si­lên­cios cúm­plices de su­ces­sivos papas men­tores das po­lí­ticas ecle­siás­ticas mais pró-ne­o­ca­pi­ta­listas, tais como Paulo VI, João Paulo II e o car­deal Rat­zinger, «de­fensor da Fé» e mais tarde Papa Bento XVI. O padre Ma­ciel já es­tava pro­posto para a be­a­ti­fi­cação quando Bento XVI mudou su­bi­ta­mente de ati­tude e o afastou de todo o sa­cer­dócio pú­blico, ainda que ne­nhum dos actos cri­mi­nosos que in­vocou lhe fossem des­co­nhe­cidos. Mas o fim das suas vidas apro­xi­mava-se e Rat­zinger am­bi­ci­o­nava deixar todo o apa­relho mon­tado por Ma­ciel nas mãos da Com­pa­nhia de Jesus. Por isso, o «es­cân­dalo» atingiu o padre man­da­tado pela hi­e­rar­quia mas deixou in­tacta a po­de­rosa es­tru­tura po­lí­tica que a «Le­gião de Cristo» re­pre­senta em todo o mundo.

Um outro as­pecto a reter é o da rá­pida ge­ne­ra­li­zação de casos como este à so­ci­e­dade re­li­giosa e à so­ci­e­dade civil. «Es­cân­dalo», quase sempre im­plica «crime».

E «crime pro­vado» exige «cas­tigo». Uma pena que passe, obri­ga­to­ri­a­mente, pelo des­man­te­la­mento do apa­relho ins­ta­lado, pelo «ins­tru­mento do crime». Apa­ren­te­mente, as leis assim o exigem. Mas se olharmos para o que se passa na ac­tu­a­li­dade com os grandes es­cân­dalos como, no caso da Igreja, do Banco Am­bro­siano (o pai dos «pa­raísos fis­cais»), do Óbolo de S. Pedro, da «Loja P2» que serviu para aliar entre si po­lí­cias se­cretas e para com­prar po­lí­ticos cor­ruptos dos re­gimes so­ci­a­listas do Leste da Eu­ropa, etc., fácil será con­cluir que aquilo que nor­mal­mente acon­tece é a ab­sol­vição dos acu­sados e a ma­nu­tenção dos seus es­quemas e ins­tru­mentos cri­mi­nosos. Nestes casos, cada vez mais fre­quentes, o «es­cân­dalo» re­pre­senta sempre uma sim­ples etapa da es­ca­lada do Poder. O crime com­pensa.

Em li­nhas ge­rais, Igreja e ca­pi­ta­lismo laico com­petem lado a lado na dis­puta do lucro e do poder. Só nas suas li­nhas es­tra­té­gicas, Igreja ca­tó­lica e ins­ti­tui­ções ca­pi­ta­listas optam por li­nhas di­ver­gentes. Con­cordam em que a crise fi­nan­ceira mun­dial, con­ve­ni­en­te­mente ge­rida, pode pro­mover a acu­mu­lação de gi­gan­tescos lu­cros e que os grandes pi­lares das ins­ti­tui­ções têm de ser salvos e re­fi­nan­ci­ados pelo OE. Re­co­nhecem também ser ne­ces­sário fazer re­cair sobre as classes mais po­bres o mons­truoso custo fi­nan­ceiro e so­cial das crises ca­pi­ta­listas. Mas, a partir destes qua­dros, optam por vias di­fe­rentes.

Os «ca­pi­ta­listas puros» re­co­nhecem a gra­vi­dade da si­tu­ação, alarmam-se e optam por so­lu­ções de re­curso com grandes mar­gens de in­se­gu­rança. Sabem como fazer di­nheiro e mais di­nheiro. Mas não en­con­tram res­postas nem pre­pa­raram al­ter­na­tivas para os su­ces­sivos pro­blemas da crise eco­nó­mica, das alu­ci­nadas po­lí­ticas de cré­dito ou para as rup­turas so­ciais que se apro­ximam. «O tempo é oiro e… não há tempo a perder». São pers­pec­tivas que roçam o de­ses­pero. Os ricos estão cada vez mais ricos mas en­tram em pâ­nico. Parar é morrer. É pre­ciso avançar, mesmo que seja às cegas. Au­mentar os lu­cros em tempo de crise, do­minar as re­voltas dos tra­ba­lha­dores e la­dear as rup­turas so­ciais que se avi­zi­nham.

Já com a Igreja, muitos destes dados têm di­fe­rente ar­ru­mação. A Igreja detém a maior acu­mu­lação de ri­quezas de sempre. É o maior ban­queiro do Uni­verso. Possui bancos, se­gu­ra­doras, ins­ti­tui­ções de cré­dito, redes de tu­rismo, «pa­raísos fis­cais», la­ti­fún­dios, minas, flo­restas, redes de hi­per­mer­cados, hos­pi­tais, es­colas, tudo quanto uma força am­bi­ciosa possa ima­ginar. Está pre­sente em todas as áreas po­lí­ticas e so­ciais. Pode bem es­perar tran­qui­la­mente que os seus só­cios se ar­ruinem. Por­tanto, pe­rante o crime cala-se e deixa andar. «O ca­minho faz-se ca­mi­nhando!», dizia Es­crivá de Ba­la­guer, o fun­dador do Opus Dei.

Ac­tu­al­mente, o grande pro­blema cen­tral do Va­ti­cano é o da «pre­ser­vação da imagem». A Igreja é o Grande Árbitro. Olha com in­te­resse os efeitos da su­cessão das crises e do des­mo­ronar dos mitos da so­ci­e­dade da glo­ba­li­zação e a fra­gi­li­zação dos seus pró­prios ali­ados. Só ha­verá glo­ba­li­zação quando a Igreja assim o en­tender, isto é, quando a Hu­ma­ni­dade aceitar o Reino Uni­versal de Cristo (Regnum Ch­risti Uni­ver­salis), go­verno mun­dial e apo­ca­líp­tico dos «fi­nais dos tempos». De­lírio, utopia ? Só o tempo o dirá.



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