Já basta!

Anabela Fino

(...) «Basta de gente que ganha num dia aquilo que ou­tros ga­nham num ano. Tem que haver al­guém que ponha cobro a isto e que tenha co­ragem.» (...) «O in­ves­ti­mento deve ser feito em bens ver­da­dei­ra­mente úteis e não em re­a­li­dades vir­tuais, que es­ti­veram na base da crise fi­nan­ceira mun­dial.» (...) «É pre­ciso ul­tra­passar o ca­pi­ta­lismo ne­o­li­beral, pois a crise é também uma crise de va­lores.»

As pa­la­vras são do bispo au­xi­liar de Lisboa, D. Carlos Aze­vedo, que a se­mana pas­sada de­sa­fiou os po­lí­ticos por­tu­gueses a ab­dicar de 20 por cento dos seus sa­lá­rios em be­ne­fício de um fundo so­cial. A pro­posta surgiu no se­gui­mento da reu­nião ex­tra­or­di­nária do Con­selho Con­sul­tivo da Pas­toral So­cial que pediu «mais res­pon­sa­bi­li­dade so­cial e po­lí­tica pe­rante a crise» e «so­lu­ções co­ra­josas» para a ul­tra­passar.

Mesmo con­si­de­rando, numa lei­tura mais fina, que o bispo po­deria ter ido muito mais longe – e logo apro­ximar-se muito mais da ver­dade – se ti­vesse dito, por exemplo, que «basta de gente que ganha num dia aquilo que muitos e muitos ou­tros Não ga­nham numa vida in­teira de tra­balho», há que re­co­nhecer que não é di­fícil – diria mesmo que é bas­tante fácil – co­mungar das opi­niões re­pro­du­zidas acima. O que é di­fícil, isso sim, é con­jugar estas pa­la­vras com o resto do dis­curso do ecle­siás­tico que ac­tu­al­mente tu­tela a acção so­cial da Igreja e, so­bre­tudo, con­ciliá-las com a prá­tica da Igreja ca­tó­lica.

Com efeito, na mesma en­tre­vista em que re­co­nheceu a es­can­da­losa in­jus­tiça da re­par­tição da ri­queza e in­vec­tivou os ges­tores que ga­nham or­de­nados «obs­cenos» – pa­la­vras suas – o bispo Carlos Aze­vedo também disse que «a crise é tão grave que não po­de­remos su­perá-la uns contra os ou­tros: em­pre­sá­rios contra sin­di­catos, sin­di­catos contra pa­trões, Go­verno contra Opo­sição e Opo­sição contra Go­verno.» A so­lução? Um «pacto so­cial sus­ten­tado e justo» entre ci­da­dãos, par­tidos, sin­di­catos e em­pre­sá­rios. Houve quem, como Mário So­ares, se con­fes­sasse «im­pres­si­o­nado» pela «lu­cidez e co­ragem» de D. Carlos Aze­vedo e, sem re­buços, «aplau­disse». Ou­tros, menos exu­be­rantes, foram di­zendo «nim», que isso de fazer ca­ri­dade pode ser muito ca­tó­lico mas 20 por cento sempre é 20 por cento, mas lá que um pacto dava jeito, isso dava...   

Pois é, mi­lé­nios de vida têm essa van­tagem: num pa­rá­grafo ali­menta-se a sede de jus­tiça dos opri­midos, noutro cuida-se dos in­te­resses dos opres­sores. Porque isto de pactos entre pa­trões e sin­di­catos, ex­plo­ra­dores e ex­plo­rados, di­reita e es­querda, al­gozes e ví­timas não passa de po­eira para os olhos des­ti­nada a pre­venir o que de facto as­susta a Igreja, ou seja o re­co­nhe­ci­mento de que «si­tu­a­ções ex­tremas de po­breza e de fome podem con­duzir à re­volta e à vi­o­lência, numa so­ci­e­dade de de­si­gual­dades», como bem alertou o bispo.

Para a Igreja, o que está em causa não é acabar com a ex­plo­ração, é torná-la su­por­tável; não é acabar com a mi­séria, é mantê-la con­tro­lada; não é pugnar pela jus­tiça so­cial, é criar me­ca­nismos de es­cape para ali­viar a pressão. Daí a pro­posta dos 20 por cento, que afinal mais não é do que a re­a­fir­mação do prin­cípio de que sempre ha­verá ricos e po­bres ou, dito de outro modo, uma so­ci­e­dade de classes em que uns vendem a força de tra­balho ou es­tendem a mão à ca­ri­dade, e ou­tros se apro­priam do lucro.

De facto, já basta! Mas esta re­a­li­dade só a luta a pode al­terar.



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