Também por isso não o esqueceremos

Aurélio Santos

Saramago estava a ser incinerado: ele que tão ardentemente viveu a vida.

E eu ia recordando as muitas páginas de descontentamento crítico que ele escreveu, com o seu descontentamento, o seu protesto, a sua cólera – ante as injustiças e desrespeitos pela pessoa humana que ao longo da vida foi conhecendo.

Talvez por isso ele era comunista.

(E por que será que o Presidente da República não quis interromper férias para integrar a homenagem nacional devida ao Prémio Nobel português, José Saramago?).

...Enquanto o fogo consumia o corpo de Saramago, eu pensava na força que o seu descontentamento nos deixou.

Sem me conformar completamente com lições adquiridas, quero retê-las para aprender. Sempre com interrogações.

E uma das perguntas que fazia era esta: haverá, como hoje muitas vezes se diz, um vazio de ideias? Ou não será melhor chamar-lhe um vazio de projectos?

De ideias está o mundo cheio. 

Por exemplo – pensava eu: a direita descobriu o povo como objecto de «utilidade pública» para uma demagogia imediatista e permanentemente mediática. Usa-o como produto em constante promoção.

Por seu lado o poder tem esquecido um recente passado português.

Lutar contra o fascismo não foi fácil; derrubá-lo, tão pouco, defender a democracia, também não. Nessa luta (em que Saramago também esteve) houve formas de descontentamento político que foram ganhando terreno, desde a rua à escrita, desde a poesia à greve, desde um sussurro clandestino até ao grito de uma palavra de ordem arvorada em manifestação.

Até aqui, numa longa e persistente nacionalidade, temos provado não ser como povo, deficientes políticos.

Há outro forte descontentamento a correr no horizonte: aquele que vê quem não cumpre um poder jurado.

A fotografia em que este governo se auto-retratou truncou princípios, abandonou paixões longa e ridiculamente afirmadas e está a deixar desfocado um país que aposta em melhor futuro.

Saramago deixou-nos, além da sua obra, um grande exemplo de resistência e luta, como cidadão e como escritor, contra os atentados à dignidade do ser humano.

Também por isso não o esqueceremos.



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