Ambições da Santa Casa...

Jorge Messias

Se há actualmente evidência que não se possa negar, ela é que as políticas sectoriais do poder (tudo incluído: Governo, maiorias parlamentares, muita magistratura, hierarquia da Igreja, Presidência da República, comunicação social, etc.) traduzem a defesa intransigente dos interesses das classes ricas. É uma leitura que se faz facilmente se atentarmos no sentido íntimo daquilo que os políticos dizem e nos silêncios estratégicos que os governantes e as instituições consagradas usam para ocultarem verdades que não convém reconhecer. Nem é preciso concentrar as atenções nos escândalos mais falados da Telecom e da TVI, das «escutas» ou das «luvas» pagas pelo «Grande Sucateiro». Basta vaguearmos por outras paragens menos visitadas mas que incluem velhos e desprotegidos, desempregados e pobres, doentes e marginalizados.

Isto, por um lado. Rodando o olhar, constata-se que as mesmas áreas são cobiçadas por grandes empresas, por investidores sociais privados e pela Igreja que acena ao Estado com a sua «sociedade civil» como instrumento de substituição das empresas estatais pelas por instituições confessionais que se ocultam sob a capa de empresas mistas público-privadas não-lucrativas. O Estado passa a simples investidor. As formações religiosas (Misericórdias, IPSS, ONG, etc.) recebem de mão aberta os hospitais, as escolas, os lares, os serviços de cuidados continuados, etc. Debitam os seus serviços ao Estado e facturam os seus créditos através dos respectivos departamentos governamentais. Sempre que tal acontece, a Constituição é varrida do mapa. As áreas que ela define como obrigações do Estado Social, passam à condição de simples mercados subordinados às leis da oferta e da procura e à formação do lucro.

O mar de corrupção em que Portugal se atolou alimenta-se sobretudo desta cínica relação ambígua entre a ambição sem limites e o sagrado, o poder democrático e a cupidez do lucro, a alegada filantropia e o mais profundo desprezo pelos pobres. Tudo disfarçado num discurso oco, intriguista e mentiroso.

 

Um projecto sem pés para caminhar

 

A hierarquia católica silencia perante a miséria que vai pelo País e no mundo. Os bispos sabem, tal como o povo humilde, que a cristandade que afirmam representar, estar Portugal a ser saqueado pela gula dos capitalistas. Têm a clara noção do processo galopante de destruição a que estão a ser submetidos estratos importantes das classes médias, alicerces insubstituíveis da organização da própria Igreja católica. Encontram-se plenamente conscientes acerca das dimensões catastróficas do fosso que separa ricos e pobres. Reconhecem que a actual crise dos países desenvolvidos corresponde, a par da degradação de situações económicas e financeiras, a uma degradante crise de valores expressa pelas guerras, pelas mentiras, pelas intrigas, pela difusão dos obscurantismos e pelos abusos do poder dos fortes contra os fracos.

Ora, a hierarquia católica, portuguesa e internacional, tem plena informação acerca da situação de catástrofe eminente em que se encontra o capitalismo mundial atolado no pesadelo da «moeda única» e da «globalização». Quando o sistema financeiro soçobrar, de nada valerão ao Vaticano os enormes tesouros acumulados pelos seus fabulosos bancos. Nem as suas offshores. A bancarrota produz pão e os bispos, tal como os mais míseros dos mortais, não escaparão à fome.

Não se entende, por isso, toda essa falta de consciência do real invocada pelo episcopado português. Julgarão eles, os «príncipes da igreja», que o povo se deixará indefinidamente enganar pela retórica do combate contra a fome ou pela balela das «instituições católicas não lucrativas»? Que os povos consentirão morrer à miséria por amor à liturgia ou expirar passivamente apelando à caridade para com os seus exploradores? Nem mesmo assim compreenderão, os grandes magos, que é do interesse da igreja separar-se, agora, do famigerado projecto capitalista do poder absoluto? E que a eles se pode e deve dirigir a humanidade deixando o aviso que endereça aos seus exploradores: arrepiem caminho enquanto é tempo!

Os horizontes cobrem-se de nuvens negras. Aproxima-se rapidamente uma gigantesca batalha da guerra de classes. Os problemas de fundo foram-se agravando com a mítica «União Europeia», com a instalação da moeda única e com o império das bolsas, das sociedades secretas e semi-secretas e com as sucessivas violações das liberdades, direitos e garantias democráticas. Chamam-lhes desemprego, infame distribuição da riqueza, quebra da moeda, anárquica especulação financeira, deriva dos poderes centrais no sentido de uma direita cada vez mais autocrática… Chamem-lhes o que quiserem. Eles impõem-se e já ninguém se atreve a negá-lo.

O embate está prestes e as baionetas contadas. A hierarquia católica teima em manter posições velhas de séculos e acantona-se no campo inimigo. Mas as grandes fomes não reconhecem dogmas e a que aí vem não respeitará a cor das vítimas ou a religião, os credos ou as convicções daqueles que irá esmagar.

Bom seria que os bispos atentassem em tudo isto. Chegou o momento de assumirem que assim é!



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