A revisão constitucional
Vai para 10 anos que o PCP tornou claro que estava em curso um processo tendente à substituição, nos conceitos e na prática, da doutrina constitucional sobre defesa nacional e segurança interna (1). Desde essa altura para cá, não mais esse desiderato foi abandonado pelos sucessivos governos e outros órgãos e estruturas que directa ou indirectamente tratam destas matérias e, independentemente, da maior ou menor intensidade mediática.
«A primeira actualização a ser feita seria a substituição da expressão
“defesa nacional” por “segurança nacional”».
Gen. Loureiro dos Santos, jornal Público 23/4/10
O vasto conjunto de alterações produzidas – durante o 1.º Governo PS/Sócrates – na orgânica das Forças Armadas e do Ministério da Defesa Nacional, bem como na área da Administração Interna, tiveram como sapata conceptual não explicitada, mas implícita, a Segurança Nacional. Agora, à boleia da revisão do Conceito Estratégico da NATO, na cimeira que se realizará em Lisboa em Novembro, assiste-se a uma ofensiva mediática em torno do tema, com uma panóplia de artigos, conferências, seminários e debates. Trata-se de uma ofensiva ideológica, visando abrir espaço nas consciências do povo português, com os olhos postos na revisão constitucional, de facto, o decisivo entrave à plena consumação dos seus objectivos. A intensidade dessa ofensiva é tal que, legitimamente, é justo considerar que para a direita nacional, mais do que o conteúdo do novo conceito estratégico da NATO aquilo que realmente é importante é remover as barreiras à implementação do conceito de segurança nacional. É neste enquadramento que surge o artigo do Gen. Loureiro dos Santos. No argumentário justificativo para tal alteração, refere o Gen. que a expressão «defesa nacional» caiu em desuso nos estados ocidentais, sendo substituída «pela terminologia NATO! “segurança nacional”» (2). Justifica ainda que a terminologia em vigor «tem originado uma série de equívocos e ambiguidades, pois os textos estrangeiros usam a terminologia actual e os nacionais mantêm a terminologia desactualizada, confundindo-se frequentemente defesa nacional com defesa militar». Acrescenta o Gen. que «não sendo aparentemente uma questão de fundo, se for resolvida impedirá erros grosseiros que podem ter efeitos profundamente negativos» (3). Prossegue dizendo que a delimitação constante no art.º 273.º n.º2 da Constituição (4) está ultrapassada e não conforme com a realidade de uma democracia «idêntica à dos seus pares europeus», e exemplifica com o 11 de Março em Espanha, referindo que «o texto constitucional em vigor impede o emprego de forças militares em suplemento das forças de segurança», ou seja, na ordem interna. Propõe assim o General que seja retirada da actual expressão constitucional a palavra externa já que, a manter-se, o uso das forças armadas implicará decretar um dos estados de excepção previstos – de sítio ou de emergência – com as «delongas» (sic) que tal implica. Em conformidade com o seu pensamento, Loureiro do Santos propõe que o Conselho Superior de Defesa Nacional mude de nome para Conselho Superior de Segurança Nacional e, mais importante, segundo o autor, a finalidade do órgão, devendo passar a ser «o órgão de consulta do Presidente da República para assuntos de segurança nacional». Refere o Gen. que assim tudo seria mais rápido do ponto de vista da decisão e emprego de forças, como seja, por exemplo, a decisão «de derrubar um avião feito refém por um terrorista suicida, que se dirigisse sobre uma multidão para se fazer explodir» (sic). Termina o General o seu artigo dizendo que também mereceria uma modificação «o facto de os serviços de informações da República não poderem proceder a escutas…».
Trocar a liberdade pela segurança
Bom, poder-se-ia dizer que o General com as questões que coloca e as justificações que dá desmonta a própria necessidade de a Constituição da República ser revista, exercício, aliás, que não é fácil, reconheça-se. Ainda assim, três apontamentos de comentário:
O primeiro, é que não serve de justificação o grau de extensão de uso das terminologias, porque sempre se poderia colocar a questão: porque é que os outros países não mudam a sua?
O segundo, é que em matéria de equívocos a sugestão apresentada pelo General também poderia dar azo a equívocos. Só não dá porque a exemplificação que o próprio adianta os desfaz. Ou seja, a intenção é mesmo a do uso das Forças Armadas na ordem interna, portanto não há equívoco possível. A justificação do avião com reféns é fraca e ao lado, um falacioso argumento inserido nalguma técnica de acção psicológica. Compete às entidades aeronáuticas – neste caso a Força Aérea – zelar, 24 sobre 24 horas, pela integridade do espaço aéreo nacional. Qualquer avião que não se identifique ou se revele suspeito implica o accionamento dos meios de intercepção respectivos e a adopção das medidas, todas as medidas, que decorrentes desse facto se imponham. Não acredito que o General Loureiro dos Santos não conheça o conceito Renegate que enforma os procedimentos a adoptar nesta matéria.
O caso de um avião que, estando tomado por terroristas, consiga ocultar esse facto, poderá concretizar o seu desiderato, mas tal será sempre concretizado com ou sem essa «abertura» constitucional. Exemplos ao longo da história não faltam, sobretudo em situações de guerra, de infiltrações aéreas ou marítimas em áreas inimigas a partir do uso dos códigos e camuflagens respectivas, ludibriando o inimigo. Não há alteração constitucional que responda a isto. A vida também é feita de uma coisa chamada bom-senso. Quantas vezes nestes 36 anos de regime democrático as Forças Armadas desempenharam tarefas (permitam que me expresse assim) relacionadas com a ordem interna? Em algum momento isso suscitou algum problema ou se transformou em polémica? Tomemos como exemplo as recentes notícias sobre a vinda do Papa e os dispositivos de segurança que foram montados ou as missões da Marinha no mar territorial, que seguindo a lógica do General seriam ilegais, coisa que ninguém suscitou ou suscita. Portanto, não vale pena inventar questiúnculas onde elas não existem. Ou então, os objectivos pretendidos são de outra natureza e pretende-se mascará-los com outras roupagens. Responderá alguém que teremos razão, mas que no quadro actual é necessário o 1.º ministro autorizar tiro de abate de um avião, para continuar a usar o mesmo exemplo, e pode não haver tempo. Ora, este é de novo um argumento falacioso, porque tem de haver tempo e não haverá se houver laxismo ou displicência. Doutro modo o que pretendem? Sistema mãos livres seguindo o princípio do abate primeiro e avisa depois?
As Forças Armadas não estão vocacionadas para a luta contra a criminalidade. A unidade da nação em torno das FFAA é um elemento fundamental que seria arrasado se as mesmas começassem a intervir no plano interno. Aberta que seja a porta, sabe-se que ela abriu, mas não se sabe até onde ela abre. Nada justifica tal alteração.
Por fim, as escutas. Pretender que possam ser feitas escutas sem indiciação do visado seria colocar o país sobre escuta. Pretender que possam ser executadas escutas por livre decisão dos serviços de informações, sem decisão das magistraturas, é abrir para um regime «sem rei nem roque» que, aliás, as alterações efectuadas nos últimos três anos de algum modo já tornam promíscuo, ao permitir o acesso do secretário-geral do SSI (5) aos respectivos processos que são, pela natureza e objecto dos diferentes serviços, de âmbitos distintos.
A conjugação das diferentes alterações sugeridas conduziria ao reforço do predomínio das concepções securitárias, empobrecendo o regime democrático. Trocar o primado da liberdade pelo da segurança constituiria um relevante passo atrás.
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(1) XVII Congresso pág. 266.
(2) Jornal Público de 23/4/10.
(3) Ibidem
(4) Diz o referido artigo, no seu n.º 2: «A defesa nacional tem por objectivos garantir, no respeito pela ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas».
(5) Serviço de Segurança e Informações.