Os ausentes
Talvez esta dupla coluna devesse começar hoje por se referir à extensíssima cobertura que praticamente todos os canais portugueses deram, na noite do passado domingo com alongadas extensões na manhã de segunda-feira, aos festejos benfiquistas pela conquista do campeonato nacional de futebol, agora com designação que envolve publicidade a uma bebida alcoólica e por isso aqui se omite. Na verdade, muitos cidadãos portugueses ainda que nada hostis ao futebol, ainda que não residentes no Porto e seus arredores, porventura até ainda que benfiquistas em dose moderada, acharam que aquilo foi de mais, foi demagógico, foi tendencialmente deseducativo. Não me atrevo, porém, a transplantar para aqui qualquer dessas opiniões negativas ou a inscrever alguma outra que com elas se pareça. Sei muito bem que uma boa parte dos meus camaradas de Partido é benfiquista e não estou disposto a parecer que deito sequer uma só gota de veneno no champanhe da sua alegria, como se diria adaptando uma fórmula britânica. Até posso confessar que não me arrisco a desagradar ao meu director, também ele benfiquista praticante, porque isto de relações com os directores de jornais é matéria que convém manter em impecável estado, bem o sei à luz de uma longa e por vezes amarga experiência. Por tudo isto e também por algo mais, parece-me conveniente e adequado que, lembrando-me de que o futebol não é, apesar de tudo e até mesmo nos seus piores momentos, um tema de primeiríssima relevância, procure assunto mais importante no quadro do que a televisão me tem dado a ver e ouvir nos dias mais recentes. E esse assunto é, sem qualquer dúvida, a expectativa da visita de Bento XVI ao nosso País, já decerto efectivada quando este número do Avante! estiver nas bancas e nas caixas do correio dos nossos assinantes.
Um dever elementar
Entenda-se desde já que não se trata, nem poderia tratar-se, de questionar aqui a visita do Papa ou mesmo o enorme impacto de que ela se reveste nos espaços públicos e privados do nosso País, assunto que de resto ultrapassaria totalmente a competência de um tosco comentador da TV. Trata-se, isso sim, de registar que nos dias que a precederam diversos canais da televisão portuguesa lhe dedicaram abundantes tempos de antena onde figuras diversas opinaram sobre o acontecimento e a personalidade de Joseph Ratzinger, bem como acerca da sua obra quer como chefe da Igreja Católica quer como figura já de topo durante o pontificado de João Paulo II. Também sobre as relações da Igreja de Roma com outras religiões, tema que me permito chamar especialmente para aqui porque ele envolveu a presença na TV de representantes de diversas confissões religiosas. Lembro especialmente um programa relativamente longo onde estiveram presentes, a par de um qualificado representante da Igreja Católica, representantes do Judaísmo, do Islamismo, e até de uma discreta e pouco conhecida Igreja Lusitana cristã mas desobediente a Roma. Foi um bonito momento de abertura democrática e plural à diversidade de opiniões perante um acontecimento que sem dúvida se repercutiu fortemente sobre toda a população portuguesa. É certo que se poderá considerar que outras opções religiosas ou, se assim se quiser dizer, outras seitas, não estiveram ali presentes. Mas a falta que mais senti, até pelo elevado número de cidadãos portugueses que a ela correspondem, foi a de pelo menos um representante dos muitos portugueses não-crentes, ateus ou simplesmente agnósticos, pois poucas ou nenhumas dúvidas haverá de que serão milhões ainda que talvez por prudência não se saiba de dados estatísticos a seu respeito. Sabe-se, isso sim, que têm o direito de ter opinião acerca do fenómeno religioso e das suas diversas formas concretas e práticas, de exprimir o que pensam sobre o tema sobretudo quando ele sobe à primeira linha da comunicação social, e também que pagam a TV pública (mas também a privada através dos custos da publicidade que a sustentam) como todos os outros cidadãos. Por aqui se torna claro que no momento em que a visita papal dá ensejo a que personalidades de diversos credos acedam à TV para falarem da religião e das religiões, a ausência dos não-crentes no âmbito desses diálogos tão democráticos e abertos consubstancia um pecado que algum julgamento mais severo qualificaria de mortal pelo menos para a sua verdadeira democraticidade. Dele fazer aqui registo com desaprovação torna-se, assim, um elementar dever. Que deste modo se cumpre.