O jipe

Correia da Fonseca

Ao passar os olhos pelo meu paupérrimo caderno de notas, encontrei nele apontadas as palavras que um dia destes ouvi no decurso de uma breve reportagem às condições de vida num qualquer canto do nosso País. Eram, bem me lembro, de uma mulher não muito idosa que vivia como tanta outra gente numa velha casa na periferia de uma qualquer localidade. Eram, pois, de uma cidadã portuguesa, europeia, na primeira década do século XXI. E dissera ela, queixosa: «-Eu como sou doente não posso comer comida roída pelos ratos, e eles aqui roem tudo!» Como bem se compreenderá, fiquei então a pensar se apesar de tudo não seria uma relativa sorte a doença de que aquela minha compatriota se queixava, se sem ela não lhe estaria reservada um ainda pior destino. Também cismei em quantos portugueses, não condicionados por doença alegadamente inibidora de consumos indiscriminados, não disputarão aos ratos o pão-nosso de cada dia, digamos assim para utilizar aqui as palavras que quase todos nós aprendemos quando crianças. E, como nisto de pensar rapidamente se passa de um lugar a outro, de extremo a extremo, lembrei-me de quantos têm vindo aos ecrãs dos nossos televisores lembrarem-nos de que andamos, parece que desde tempos imemoriais, a viver acima das nossas possibilidades, a fazermos vida de ricos quando não o somos. Todos nós, ao que parece, pois nunca ouvi nenhum desses perspicazes diagnosticadores de excessos apontar as diferenças entre quadros superiores de empresas e suas excelentíssimas esposas e a empregada a recibo verde que todos os dias se levanta de madrugada para ir limpar os gabinetes patronais depois de ir, de autocarro, entregar o filho aos cuidados de uma ama. Por exemplo. E de escala em escala, como nos itinerários dos aviões, acabei por pensar no que se tornou o grande assunto da vida internacional segundo os telenoticiários: o caso da Grécia, pelos vistos à beira da bancarrota e a sobreviver ao preço de gigantescos empréstimos porque, ao que parece, o povoléu grego andou anos e anos a viver à tripa forra, sem se sacrificar o bastante em favor dos proprietários do aparelho produtivo como mandam as boas regras não apenas do capitalismo agora dominante mas também as do capitalismo de sempre.

 

O medo como motor


Porém, regressando à TV propriamente dita e ao que ela nos vai contando do mundo, é preciso registar que além do Caso Grego um outro assunto surgiu nos telenoticiários que pode não ter menor importância ainda que situando-se num outro plano: o aparecimento de um jipe armadilhado em Times Square, aparentemente destinado a levar o terror e a morte, uma vez mais, ao coração de Nova Iorque. Pondo de parte a hipótese, contudo não totalmente absurda, de se ter tratado de uma manobra dos serviços secretos USA para injectar no povo norte-americano, graças à técnica do susto, reforçado ânimo para continuar a suportar uma guerra em duas distantes frentes que é um sorvedouro de vidas e de milhões de dólares, o caso tem um óbvio significado: o de que os agressores Estados Unidos já não podem dormir descansados à sombra do seu esmagador poderio militar. Até agora, não vi que tenham vindo à televisão alguns dos habituais comentadores e analistas que, poderosamente municiados com sabedorias e clarividências, discorressem sobre este inquietante caso e, se possível, admitissem a sua interacção com um fenómeno que está a ocorrer nos Estados Unidos e seus arredores (sendo que, como se sabe, os arredores dos Estados Unidos são o planeta inteirinho): o crescimento das direitas radicais. No interior norte-americano, parece visível que Barack Obama, mesmo sendo um presidente que manda pouco ou nada, como aliás a condução da política externa por Hillary Clinton demonstra, já não serve, nem mesmo para dar um arzinho de democratismo interno fornecido pela cor da pele. E é talvez caso para lembrarmos que a direita passa a ofensivas mais agressivas quando o pavor a visita e encara novos avanços. Pavor de quê, hoje? Lembro-me da crise financeira que está longe de ser dominada, da América do Sul onde a insubmissão ao capitalismo alastra, do atoleiro das guerras que todos os dias se perdem. Como telespectador que sempre deseja ser esclarecido embora sempre se veja frustrado, faz-me falta que venha à TV quem a partir daquele misterioso jipe, instrumento de um atentado providencialmente falhado, me proponha reflexões inteligentes. Remeto-me, é claro, para uma espera sem esperanças. Como sempre, de resto.



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