Flores
A noite televisiva da SIC não foi, no passado domingo, como seria previsível apenas uns dias antes: perante a catástrofe que atingira a Madeira na semana anterior, a estação seguiu a sua própria tradição de solidariedades e filantropias e organizou rapidamente mais um espectáculo de gala que recebeu o título bonito de «Uma Flor para a Madeira». A iniciativa contou com o alto patrocínio do Presidente da República, o que decerto lhe conferiu um valor moral acrescentado, e não apenas o alto patrocínio mas também o benefício da sua presença. Acresce que, segundo foi anunciado, o senhor Presidente não esteve isento de pagar o seu bilhete de entrada tal como o da sua Esposa, à razão de dez euros cada um, pelo que bem se vê que o valor acrescentado não foi apenas moral. Quanto ao espectáculo propriamente dito, decorreu como seria de esperar, bem frequentado quer na sala quer no palco, com os momentos mais débeis que são inevitáveis nestes e noutros casos. De resto, como é sabido, a SIC dá frequentes sinais de gostar muito de galas e, é claro, do gosto rapidamente se passa à prática, com vários proveitos que daí decorrem. Não sei, naturalmente, o montante do apuro financeiro final da iniciativa, e menos ainda sei da sua relevância para o enfrentamento das muitas necessidades que seguramente afligem a Madeira em consequência do desastre havido, mas sei, como todos sabem, que o maior valor é o da solidariedade activa que o espectáculo consubstanciou, o da comoção que percorreu o continente perante as notícias vindas da ilha e o espectáculo das muitas misérias de vária ordem que as diversas reportagens trouxeram para as nossas casas de súbito tornadas ainda mais confortáveis do que é costume. Outras lamas De resto, quase se diria que a catástrofe madeirense estimulou um pouco o habitual gosto português pelas flores como símbolos de sentimentos louváveis e delicados: repare-se não apenas no título da gala da SIC mas também no facto de o programa «As Escolhas de Marcelo Rebelo de Sousa» ter encerrado, também no domingo, com o gesto da oferta de uma flor, por sinal um antúrio, à jornalista que ali acompanhou o professor nos últimos tempos na qualidade de dadora de «deixas», um pouco como o sacristão que ajuda a missa do celebrante. E não pode passar despercebido que a própria jornalista se chama Flor, o que alguns até podem suspeitar de ser um sinal do destino. Ora, um pouco nesta mesma linha, ao deparar com a gala da SIC e o seu título, ocorreu-me, sem o mínimo prejuízo do muito respeito que tenho pelas vítimas da Madeira, as que o desastre matou e as que sobreviveram marcadas de modo que mal se imagina, que sem a mesma súbita brutalidade e a espectaculosidade que dela decorre, sem o furor das forças da natureza rebeladas, todos os dias gentes do meu País se vêem com as vidas subitamente desfeitas porque sobre elas se abateu uma outra espécie de violência. Refiro-me às vítimas dos despedimentos, aos que de um dia para o outro se apercebem de que estão desfeitos anos e anos de trabalho e, em muitos casos, de que é tarde para que tudo possa ser reconstruído ou remediado. Lembrando-o, comecei por pensar que se justificariam outras galas semelhantes à havida agora no Coliseu, com alto patrocínio e honrosa presença ou mesmo sem ela, e então talvez a SIC se dispusesse a mais uma série de generosas iniciativas: seriam flores atrás de flores, um verdadeiro ramalhete que ameaçaria tornar-se interminável. Pensando melhor, porém, e sobretudo informando-me melhor, encontrei dados muito credíveis que levam a crer que no caso da Madeira teria sido importante, porventura decisivo, ter havido no tempo certo cuidados e providências que evitassem a catástrofe. Dizendo-o por outras palavras: que é linda a oferta de flores vegetais ou pecuniárias, mas que bem melhor é rejeitar os caminhos que mais cedo ou mais tarde geram as desgraças. Dei por mim, então, a aplicar a mesma regra às circunstâncias que em Portugal inteiro, de Norte a Sul, produzem a negra floração quotidiana da desgraça surda do desemprego que invade as casas, por mais que se lhe queira fechar a porta, como a maré das lamas que se infiltram empurradas pela força das torrentes vindas do alto ou dos leitos inchados dos rios ou das ribeiras. E percebi que quanto a essa catástrofe é inútil o bonito gesto que organiza galas com títulos que nos falam de flores. Que o que há a fazer tem de ser diferente.