Sinal, ruído e «interpenetração de opostos»

Francisco Silva
A leitura em que ando de dois livros absorventes, cada um absorvendo a minha atenção à sua maneira, e cada um uma maravilha também à sua maneira… pois é, para ler-se tem que se aproveitar o que se pode dos tempos intersticiais das tarefas de cidadão, familiares, de convívio, profissionais e outras, em particular as de manutenção dos meios de vida… E desculpem-me a palavra, pois parecerá algo raro falar em tempos intersticiais, mas, para o autor destas linhas, é mil vezes mais significativa esta palavra que dizer tempos mortos – que é isso de tempos mortos? –, aliás, são os interstícios temporais, aqueles em que se fazem as nossas leituras (onde se incluem os tempos da escrita como esta), sempre vivíssimos, com frequência bem mais vivos que aquilo que se considera serem os tempos activos das nossas vidas. Por isso mesmo, ainda, os tempos intersticiais se infiltram tanto pelos tempos ditos activos, sobretudo pelos menos interessantes, do que resulta poder parecer que andamos – dizem-nos – despistados, de cabeça no ar…
Dizia eu que ando de leitura por dois livros absorventes, por aí afora. São eles os recentes «FINISTERRA – O Trabalho do Fim: reCitar a Origem» de Manuel Gusmão e «Valences of the Dialectic» de Fredric Jameson. Este segundo já vem a ser lido haverá mês e meio, é grande e compacto, nas suas bem mais do que seiscentas páginas, vai por mais de meio. O livro de Manuel Gusmão, com cento e tantas, começado haverá uma semana, foi completamente tragado e entrou em fase de ruminação – é o termo. O livro de Jameson, com as referidas seiscentas e muitas páginas, vai mais de metade agora numa parte designada por Manual de Análise (dos conceitos) da Ideologia.
A razão porque os trago aqui à colação é muito por causa da Dialéctica, que grande presença tem nestas obras, e de cujas influências elas estão prenhes, obrigando-me a uma dinâmica de leitura que me levou de volta – e espero que não de todo de modo impertinente! – para o caso concreto nas (tele-)comunicações – um caso que já tenho aproximado nestes textos, sobretudo na perspectiva da «interpenetração dos opostos» «sinal» e «ruído», «interpenetração dos opostos» que é uma das três leis da Dialéctica referidas por Friedrich Engels, aliás citadas no livro de Fredric Jameson (as outras, como é conhecido, são a lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa e a lei da negação da negação).

Combinação sempre diferente

E de facto, no caso que aqui queremos referir, os opostos são o sinal e o ruído que sempre coexistem, não há maneira de fazer desaparecer o ruído e ficar só com um sinal, digamos, puro: uma contradição em acto e inevitável! Portanto, o «sinal» que captamos é sempre o resultado de uma interpenetração de sinal e ruído… com uma combinação sempre diferente nas suas múltiplas repetições, mesmo quando transmitindo em diferentes alturas a mesma quantidade de informação – em bits, claro!
Uma «solução», esta que verificamos aqui para uma contradição na telecomunicação de sinais, a recordar-nos aqueloutra luminosa passagem de Marx – luminosa é como Jameson a qualifica –, de «O Capital» quando discute a estrutura da mercadoria e as suas contradições, nomeadamente entre o valor de uso e o valor de troca: «Viu-se que o processo de troca das mercadorias encerra relações contraditórias e mutuamente exclusivas. O desenvolvimento da mercadoria não suprime estas contradições, mas cria a forma em que elas se podem mover. Este é, em geral, o método através do qual as contradições reais se resolvem. É, p. ex., uma contradição que um corpo constantemente caia sobre outro e também constantemente fuja dele. A elipse é uma forma das formas de movimento em que esta contradição tanto se realiza como se resolve.»(1)
O «sinal» enquanto realização e resolução da contradição sinal / ruído, tal como a elipse enquanto realização e resolução para o movimento da Terra em torno do Sol ou a mercadoria em tempos capitalistas, enquanto forma onde se podem mover – realizar e resolver – as respectivas relações contraditórias e mutuamente exclusivas, são factos respeitantes a contradições que, em si, não são nem bons nem maus… o bom e o mau varia segundo a perspectiva, como na extorsão das mais valias, que é boa para o explorador e má para o explorado.
Agora, quanto ao «sinal», para captá-lo com fidelidade é mesmo necessário que a potência do sinal «puro» seja suficientemente maior que a do ruído (para além de outras condições…)!
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(1) Marx, Karl (1990) – «O Capital», Livro I, Tomo I, p.123. Lisboa / Moscovo: Editorial Avante!/ Edições Progresso.


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