As ribeiras

Correia da Fonseca
De súbito, as ribeiras da Madeira, há muito severamente comprimidas por obras ao longo dos anos havidas nas suas margens, engrossadas pelas chuvas torrenciais que desabaram sobre a ilha, como que se revoltaram, saltaram dos seus leitos, galoparam em direcção ao mar largo e na sua correria arrastaram gentes e casas, árvores e carros, transformando recantos idílicos em cenários de pavor. Foi, como bem se sabe, uma tragédia sentida não apenas pelos que a sofreram e pelos que dela mais perto estavam, mas também por todo o País. Quanto à televisão, depressa se mobilizou para ir aos locais mais atingidos e dar-nos a ver a dimensão do desastre, e não direi que na sua tarefa pecou por défice de atenção. Confesso até que, movido talvez por algum preconceito, suspeitei por vezes que esse trabalho foi executado com algum entusiasmo que não se avizinhou propriamente da alegria, naturalmente, mas que uma vez ou outra se acercou da euforia. Entender-se-á que assim tenha sido: sabe-se que a televisão gosta de desgraças, se assim me posso exprimir, embora as que ocorrem em nossas casas impeçam o júbilo propriamente dito, e por mais de uma vez julguei aperceber-me de que um ou outro repórter, ao fazer a cobertura do desastre de um modo vibrante em lugares devastados da ilha, se sentia um pouco como se aquele fosse o seu pequeno Haiti, um Haiti acontecido à modesta escala portuguesa mas que ainda assim lhe dava uma oportunidade que lhe escapara quando da grande tragédia haitiana. Entenda-se que esta suspeita não implica um desfavorável juízo no plano ético, apenas regista com compreensão uma possibilidade, talvez uma plausibilidade. De resto, felizmente, a Madeira não foi o Haiti, o Funchal ficou a uma infinita distância de Port-au-Prince, e Alberto João Jardim não se parece nada com o Papa Doc ou sucessores.

Flagelados e batidos

Usando uma linguagem metafórica talvez de mau gosto, poder-se-á dizer que as águas rebeladas das ribeiras do Funchal inundaram até os noticiários da televisão portuguesa, de tal modo que até fizeram amainar o furacão informativo que também na TV, porventura sobretudo na TV, desabara sobre o primeiro-ministro. O relativo enfraquecimento dessa tempestade não é fenómeno que me importe muito, a minha posição pessoal quanto a essa matéria é, como facilmente se compreenderá, idêntica à já expressa publicamente pelo Secretário-geral do meu Partido: desejo que a Justiça faça o seu trabalho bem e depressa, que nos diga o que concluir, e depois falaremos. Porém, já as mesmas tolerância e paciência, aliás apenas relativas, não me visitam quanto a outras ribeiras, digamos assim, que correm no continente do meu País. Por exemplo, continuo sem que a TV me dê notícias da luta laboral dos mineiros da Neves-Corvo, e muito queria não apenas saber, mas também que todos os telespectadores portugueses soubessem, as circunstâncias em que ela decorre: os pesados custos humanos que ao longo do tempo a terão motivado, o muito ou o pouco que os trabalhadores reclamam, o preço que os grevistas por ela pagam, coisas assim. Outro exemplo é o dos pescadores portugueses. Pelas notícias que vão chegando, breves e parece-me que escassas, acho que estão a morrer muitos pescadores, não porque haja entre eles algum surto de tentações suicidárias mas sim porque as condições de difícil sobrevivência para que foram empurrados os obrigam a arriscar a vida no mar quando a elementar prudência profissional os mandaria ficar em terra. Adivinho o que parece óbvio: que esses trabalhadores arriscam a vida em condições desfavoráveis para que as suas famílias não enfrentem o risco das várias modalidades de fome que porventura já as cercam. É claro que se trata de situações muitíssimo menos trágicas que as ocorridas na Madeira, mas são sem dúvida cidadãos nacionais (quantos, incluindo-se na eventual contagem os familiares?) flagelados por injustiças e batidos por angústias, que por isso são credores não só da nossa solidariedade mas também da atenção da televisão portuguesa. De certo modo, são equiparáveis a ribeiras que de um momento para o outro podem, quem sabe?, resultar em desastres. E custa-me que a TV pareça ter esquecido os seus casos e porventura outros como os seus. Porque na Madeira aconteceu o horror, sem dúvida, mas por esse Portugal fora, de Norte a Sul, há mais horrores a que a televisão tem o estrito dever de estar atenta. Para que possamos conhecê-los. E, eventualmente, cumprir os nossos deveres de solidariedade e fraternidade.


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