Por um ideal superior

Homens generosos

Manoel de Lencastre
Numa produção quase irrepreensível da BBC, a RTP 2 transmitiu há meses em Portugal a série, famosa na Grã-Bretanha, que descreve o trabalho perigoso e a vida espantosa daqueles que ficariam conhecidos como traidores e espiões. Estas designações são susceptíveis de debate. Não correspondem, inteiramente, à opinião geral dos que viram o mundo a partir dos anos trinta e acompanharam o desenvolvimento dos conflitos entre os povos até aos nossos dias. E porque estamos já a 20 anos da morte do último dos chamados ‘espiões de Cambridge’, Anthony Blunt, vale a pena observar o que, na verdade, aconteceu.
Blunt era um homem de excepcional cultura. Era o conselheiro da raínha Isabel II e de toda a família real para assuntos de arte. Entre os principais especialistas na obra de Poussin, Blunt era considerado o primeiro. Nascera em Bournesmouth, a 26 de Setembro de 1907. O seu livro “Arte e Arquitectura em França (1500-1700)” é, ainda, uma das obras de referência consideradas inevitáveis. Como um dos principais críticos e historiadores de arte britânicos, foi agraciado com o título de ‘sir’ e feito membro da Ordem do Império Britânico (OBE).

Pressentindo o rumo que as coisas tomaram, a URSS, nos anos trinta, procurava contactos nos países industrializados que a habilitassem a conhecer as reais intenções das ‘democracias’. A experiência das invasões levadas a cabo pelos países capitalistas em todo o território soviético logo após a Revolução de Outubro não estava, seguramente, esquecida. Os serviços de ‘inteligência’ soviéticos procuravam homens das universidades, da diplomacia, dos serviços secretos, mas que tivessem abraçado os ideais do socialismo, homens que também fossem capazes de agir contra as constantes conspirações do imperialismo. Não se tratava de tarefa impossível. As ideias dos comunistas estavam bem vivas nos meios intelectuais e industriais da Grã-Bretanha onde o Partido Comunista, liderado por camaradas históricos (Harry Pollitt e Palme Dutt, entre muitos mais) oferecia a luz do amanhã socialista numa conjuntura que não deixava dúvidas a qualquer pessoa generosa. Blunt, assim, aderiu ao Partido e, mais tarde, aceitaria colaborar com as autoridades soviéticas no fornecimento de informações que permitissem defender a paz ou, em última análise, como aconteceu, ganhar a guerra.

O círculo dos chamados ‘espiões’ de Cambridge compreendia, além de Blunt, os mais célebres Kim Philby, Donald Mclean e Guy Burgess. Tem de dizer-se que o trabalho destes homens ajudou a URSS, em muito, a compreender os objectivos dos países imperialistas, tanto durante a 2ª Guerra Mundial como após esse conflito e que, com a colaboração de outros, permitiu o rápido acesso à arma atómica quando o presidente, Harry Truman, tinha já sobre a secretária o plano de bombardeamento de 32 cidades soviéticas para que a URSS fosse aniquilada. Os ‘espiões’ de Cambridge, infiltrados nos serviços secretos e diplomáticos em Londres e Nova York, ajudaram a salvar o mundo de uma catástrofe nuclear que os Estados Unidos desejavam mas que não puderam levar à prática devido a que sofreriam, entretanto, consequências igualmente desastrosas.

A super-patriota vingativa

Na Grã-Bretanha dos anos 50 e 60, a caça aos super-espiões era o passatempo favorito dos super-patriotas. Em 1964, Michael Straight, funcionário do Departamento de Estado, confessara ao FBI e ao MI5 (serviços de espionagem internos americanos e ingleses) que, em tempos, tinha sido recrutado por ‘sir’ Anthony Blunt. Um outro ‘espião arrependido’ confirmou que assim tinha acontecido. Mas o governo de Londres optou por oferecer imunidade a Blunt que, em contrapartida, aceitou revelar as suas passadas actividades ao serviço de Moscovo para preservar a sua liberdade e a continuidade do seu trabalho no campo da arte quando Philby, Maclean e Burgess já se tinham refugiado na URSS. Este acordo permaneceu ‘top-secret’ durante 15 anos, até que apareceu a ‘super-patriota’, Margaret Thatcher.

Em 1979, a primeira-ministra ‘tory’, ao tomar conhecimento do acordo que se fizera com Blunt, demonstrou a incontível raiva que se lhe conhece e, imediatamente, se declarou disposta a anular tal acordo tornando público que Blunt era o quarto espião num círculo que englobava Philby, Maclean e Burgess. Numa histórica sessão da Câmara dos Comuns, denunciou Blunt como espião soviético. O historiador de arte foi destituído do cargo de director do ‘Courtauld Institute of Art’ e o Parlamento retirar-lhe-ia, dias depois, o título de ‘sir’ e a medalha do OBE. Anthony Blunt faleceu a 26 de Março de 1983, em Londres. O ‘Sunday Times’ escreveria: «Blunt, espião de alta classe, morreu em desgraça, aos 75 anos». Mas o homem em questão, engrandecendo-se, dissera: «A verdadeira função da arte, é a propaganda». A propaganda política e ideológica, evidentemente.

A voz da História

Donald Maclean (1913-1983)

Nasceu em Londres. Estudou em Cambridge. Recrutado pelos serviços secretos soviéticos em 1944. Em 1950, tornava-se chefe do Departamento de relações com os Estados Unidos no Foreign Office. Tinha acesso a todas as informações trocadas entre Londres e Washington em matérias de desenvolvimento da energia atómica. Mas, em 1951, era avisado por Philby de que já suspeitavam dele. Philby, por sua vez, fora avisado por Blunt. No dia do seu 38º aniversário, após rápidas despedidas da família (mulher e três filhos) escapou, com Burgess, de automóvel, numa rota preparada pelos contactos soviéticos. Os dois homens viajaram para Southampton e, aí, embarcaram no navio ‘Falaise’ que partiu para St. Malo, em França. Em segredo, chegaram a Paris, partiram para Praga e, finalmente, Moscovo recebeu-os. Nunca mais voltariam à Grã-Bretanha.

Kim Philby (1912-1988)

O seu nome real era Harold Adrian Russell Philby. Nasceu na Índia. Na Universidade de Cambridge estudou Economia e História. Trabalhou como jornalista durante a Guerra Civil de Espanha. Entrou para os serviços secretos britânicos do exterior (MI6), em 1940, com a ajuda de Guy Burgess que já lá trabalhava. Em 1944, estava a cargo dos serviços anti-soviéticos daquela organização mas, na verdade, trabalhava para a URSS. Não era agente duplo. Recebeu, também, o título de membro da OBE (Ordem do Império Britânico) e, em 1949, ocupava o lugar de chefe dos serviços britânicos de ‘inteligência’ nos Estados Unidos pelo que estava em contacto diário com o FBI e a CIA, esta recentemente formada. As investigações relacionadas com Burgess e Maclean conduziram a que caísse sob suspeita e fosse interrogado. Demitiu-se e voou para o Líbano onde passou a trabalhar numa velha paixão, a do jornalismo. Mas em 1962, agentes do imperialismo voltavam a estar perto. Em 1963 fugiu para a URSS onde lhe foi concedida a cidadania do país de Lenine. Morreu em Moscovo.

Guy Burgess (1911-1963)

Era o mais ‘flamboyant’ (flamejante) de todos. Com o curso de Eton (1930), entrou para a Universidade de Cambridge (Trinity College). Era um homem brilhante. Mas o consumo de alcoól, excessivo, e a sua homosexualidade, às vezes escandalosa, tornavam-no vulnerável. Entrou para o MI6 (Departamento D) em 1939. Mas trabalhara, antes, para a BBC e para o jornal ‘The Times’. Na primeira destas duas instituições foi-lhe fácil conseguir contactos com os serviços secretos soviéticos que o recrutaram. Em 1944, entrou para o ‘Foreign Office’ de onde dirigia todas as informações políticas e diplomáticas do governo britânico. Ao partir para Washington a fim de prestar serviço na Embaixada britânica foi avisado para evitar excessos sexuais, problemas raciais ou agressividades políticas de esquerda. Foi viver para casa de Philby, então 1º Secretário da Embaixada. A esposa, Eleanor Philby, reclamava, vigorosamente, contra os hábitos de Burgess e a sua flagrante homosexualidade. O embaixador ordenou-lhe que regressasse a Londres onde Maclean o avisou de que, segundo Philby, ambos cairiam na rede da contra-espionagem a menos que fugissem. Foi o que aconteceu.



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