O mercado transnacional do ensino privado quer entrar

Rui Namorado Rosa
Quando assistimos agora à retórica oficial sobre «reforma do ensino» é útil entender o que está por baixo e atrás. As reestruturações do ensino secundário e do ensino superior, num quadro apresentado como sendo de «contenção orçamental», procuram acelerar os processos de privatização do ensino e de bipolarização das qualificações escolares e das categorias laborais.
Quando agora se enfoca a atenção pública nas propinas no ensino superior público, remete-se para a sombra, se possível para o esquecimento, que o financiamento do Estado para o Ensino Superior público tem sido mantido, ano após ano, muito aquém do que seria necessário e do que fora o compromisso dos governos passados; que o financiamento para a Acção Social Escolar tem sido mantido silenciosamente nos mínimos dos mínimos, sem de longe oferecer a apregoada garantia de ingresso a todos os jovens economicamente carenciados que façam prova das suas capacidades e vocações; que o financiamento para a investigação científica e o desenvolvimento tecnológico (POCTI) foi de facto reduzido nos dois últimos anos, drasticamente no corrente ano; que o financiamento para a sociedade da informação (POSI), não tendo este sido reduzido, foi todavia desviado da rede do ensino superior.
Enfim, o que se passa, é uma asfixia geral do sistema de ensino, particularmente do ensino superior público. O déficite orçamental do Estado é a «desculpa» a que se somam insultos ora aos estudantes ora aos professores, tomando aspectos ou episódios parcelares por avaliações globais, mas imperdoavelmente omitindo, por demagogia ou por ignorância, as várias facetas do que é de facto um assalto geral ao ensino público.
Na retaguarda, o capital interessado na apropriação privada do sistema de ensino pressiona o governo e manobra a opinião pública seu jeito.
O «comércio livre» conducente à acelerada expansão e integração global do capital, é propagandeado como benéfico não só para a economia mundial mas até também para as condições de vida dos trabalhadores. Porém a observação dos indicadores económicos apontam na direcção oposta.
Para os países da periferia, a prioridade dada à «abertura» da economia tem determinado a subalternidade da resolução de problemas sociais e do investimento produtivo duradouro. Muitos países do «Terceiro Mundo» têm sido forçados a desmantelar as suas infra-estruturas públicas nas últimas décadas sob programas de ajuste estrutural impostos pelo BM e pelo FMI. Para terem acesso à renegociação da dívida, por exemplo, dúzias de países «em desenvolvimento» têm sido obrigados a abandonar os seus programas sociais públicos ao longo dos últimos 20 anos, e a permitir que corporações estrangeiras entrem e vendam os seus «produtos» em educação e saúde aos «clientes» que possam pagar por eles, deixando milhares sem os serviços sociais básicos.
Para os países do centro do sistema capitalista, o principal efeito do comércio internacional parece ser uma redistribuição do excedente das empresas em benefício do patronato e não a ampliação do excedente. O comércio não parece estar a ampliar a riqueza mas sim a redistribui-la desigualmente. Na realidade, a acrescida competição internacional traduz-se efectivamente numa maior «elasticidade» da procura interna por trabalho, o que significa que um trabalhador compete agora com uma oferta de trabalho muito mais vasta. Consequentemente, aumenta a vulnerabilidade do trabalho às flutuações do mercado, o que enfraquece a posição negocial do trabalho face ao capital.

Assalto aos serviços públicos

Sem dúvida, o comércio internacional é um instrumento central do desenvolvimento do sistema capitalista. Desde o termo da Segunda Guerra Mundial, ele tem sido regido através da GATT, depois reestruturado em WTO (OMC). Contrariamente a qualquer outra instituição global, a OMC tem poder legislativo e judiciário para contestar e revogar leis, práticas e políticas de países individuais. A OMC não contempla quaisquer normas de protecção do trabalho nem dos direitos humanos, assim como não contempla quaisquer princípios sociais ou ambientais. Sempre que tem intervido para contestar e combater uma lei de saúde doméstica, de segurança alimentar, de comércio justo ou de meio ambiente, a OMC tem ganho. A soberania dos povos é um obstáculo ao imperialismo e é por ele aniquilada.
Os Serviços são o sector com maior crescimento no comércio internacional, sobretudo a partir da UE e dos EUA, e oferecem excelentes oportunidades de rendimento às transnacionais aí instaladas. De entre os serviços públicos, a saúde, a educação e o abastecimento de água estão identificados como oferecendo os mais elevados potenciais lucrativos. Os gastos mundiais com serviços de abastecimento de água excedem actualmente em US$ 1 trilião (milhão de milhões) por ano; em educação eles excedem 2 triliões; e em saúde, excedem 3,5 triliões. [E. Elliott with Maud Barlow, GATS Privatising all services!, http://www.2012.com.au/GATS.html ]. Um acordo global está a ser negociado para permitir às CTN apoderarem-se dos serviços públicos de todo o mundo, independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor, significará a extinção do sector público [Maude Barlow, GATS: a última fronteira da globalização, http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html].
O Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços - AGCS ou GATS em Inglês - é um dos mais de 20 acordos comerciais administrados pela Organização Mundial de Comércio (OMC ou WTO). O AGCS foi estabelecido em 1995, na conclusão do ciclo de debates do «Uruguai round» do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade ou Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) que conduziu à criação da OMC. As negociações deveriam começar cinco anos depois e tiveram de facto seguimento em Fevereiro -Novembro de 2000 em Doha, Qatar. O objectivo era então alcançar um acordo final até Dezembro de 2002 entre mais de 130 países. O seu propósito final é tomar de assalto todos os serviços públicos, a abolição mesmo do conceito fundamental de serviço público sem fins lucrativos, para que as corporações deles se apoderem sobre todo o mundo.
O mandato do AGCS é a liberalização do comércio de serviços, incluindo o desmantelamento das barreiras estatais à privatização dos serviços públicos, até desarmar os Estados da sua capacidade de administrarem os serviços públicos em base não lucrativa. O actual ciclo de negociações AGCS tem como meta estar completado e os seus acordos entrarem em vigor em 2005. O processo, conduzido quase sigilosamente, com pouca informação e consulta pública, enfrenta a desconfiança e até a hostilidade aberta da opinião pública, e não está isento de contradições internas.

Privatização em todas as áreas

As transnacionais estão por detrás e impulsionam o AGCS. Desde a constituição do GATT em 1947 até à sua reconfiguração em WTO (OMC) em 1995, realizaram-se oito ciclos de negociações de que o último foi no Uruguai («Uruguai round»). O sétimo ciclo em Tóquio (1973-1979) foi contemporâneo da elaboração do que viria a ser denominado «Consenso de Washington» - um modelo de economia baseado nos princípios de privatização, do mercado livre e da desregulamentação, a ser realizado a nível mundial - bem como da constituição de corporações transnacionais (TNC) gigantescas que, por já operarem a nível mundial, se haviam isentado das regulamentações internas dos estados, e que pretenderam então impor a desregulamentação da sua actividades no plano internacional também.
A acção do AGCS desenvolve-se em paralelo e consonância com o desenvolvimento dos processos nacionais de privatização da propriedade e dos serviços públicos. Esta ofensiva desenvolve-se segundo um padrão reprodutível. O processo de privatização da propriedade pública desenvolve-se em três fases. A primeira fase, já muito avançada, foi a de privatização de empresas públicas industriais e financeiras. A segunda fase consiste ainda na privatização de serviços públicos infra-estruturais – água, energia, transportes e comunicações; primeiro a privatização do estatuto jurídico e de seguida a privatização do capital social. A terceira fase está a iniciar-se na Europa, estando mais avançada nalguns outros países e tem em vista a privatização de serviços públicos de natureza não empresarial – saúde, educação, segurança social – ou seja, o núcleo essencial do estado previdência.
Antes das negociações do AGCS começarem, no início de 2002, as grandes corporações fizeram saber ao governo dos EUA e à Comissão Europeia quais as áreas prioritárias a serem alvo da liberalização comercial, e a lista é de veras completa: assistência social, cuidados de saúde, cuidados para a infância, serviços para idosos, educação a todos os níveis, museus e biblioteca, banca e seguros, actividades jurídicas, serviços postais, telecomunicações, transportes públicos, construção, turismo, energia, serviços de água, saneamento básico, protecção ambiental, e não só. Os «bens comuns», serão alvo de generalizado assalto se o AGCS entrar em vigor. O património comum, como sementes e genes, ar e água, cultura e herança cultural, saúde e educação, poderão ser apropriados e retalhados para comercialização. Também o emprego temporário de pessoas físicas como profissionais independentes será liberalizado, reforçando a mobilidade de cérebros e a flexibilidade da oferta e prestação de trabalho, levando a exploração do trabalho pelo capital aos seus concebíveis limites.

Alargar a exploração

Em Fevereiro de 2003, a campanha Europeia contra a AGCS atingiu uma vitória quando o Comissário Europeu para o Comércio, Pascal Lamy, foi forçado a anunciar (admitir?) que a Comissão Europeia não comprometeria mais os sectores da saúde e da educação às regras de mercado livre do AGCS e nenhum compromisso seria de todo tomado em comunicação social em futuras negociações com o AGCS. Foi uma evidente retirada táctica, de cedência à corrente de opinião pública organizada, tomada quando estava convocada uma manifestação que reuniria milhares de manifestantes e sindicalistas em Bruxelas. Todavia, pelo contrário, a CE anunciou a intenção de aprofundar a abertura dos serviços postais, de telecomunicações, de transportes, financeiros, ambientais e de distribuição (retalho) europeus à competição estrangeira. Sem esquecer que a CE prossegue a intenção e as diligências para alargar a exploração privada de serviços públicos a países terceiros, particularmente aos países menos desenvolvidos dentro da sua esfera de influência. [World Development Movement, http://www.wdm.org.uk/campaign/GATS.htm ].
Diversos países opõem-se ao avanço das negociações, e está em crescimento o movimento social internacional que visa opor-se à trajectória do AGCS. O rotundo insucesso da conferência ministerial da OMC em Cancun no México (10-14 de Setembro de 2003), é sintomático da crescente contradição entre os interesses económicos capitalistas e os interesses sociais das mais amplas massas de trabalhadores em todo o mundo, bem como do progressivamente aberto confronto entre países capitalistas mais industrializados, que até agora têm livremente imposto a sua vontade no quadro do comércio mundial, e os países «em desenvolvimento», continuadamente espoliados e todavia potencialmente mais ricos e poderosos em recursos naturais e humanos (Brasil, México, Índia, R.P. China, entre outros).
Vemos pois muito bem qual o alcance das políticas nacionais que impõem propinas no ensino público e taxas moderadoras nos serviços de saúde. Sob o regime proposto pelo AGCS, as empresas estrangeiras de saúde e de educação poderão estabelecer-se em qualquer país da OMC e terão o direito de competir por financiamento público com as instituições públicas, como hospitais e escolas. As actividades dos profissionais de saúde e de educação ficarão sujeitos a regras da OMC também. Serviços de telemedicina (virtual) com sede no exterior serão legais e às corporações educacionais sediadas no estrangeiro será reconhecida autoridade para conferir graus académicos. E os governos nacionais não terão autoridade para controlar a competição transfronteiriça de profissionais de saúde e de educação com baixas remunerações salários. Tudo isto será possível em nome das virtudes transcendentes e indiscutíveis do «comércio livre», segundo a doutrina neoliberal do «Consenso de Washington».

O «último» reduto

Mas a Educação é o «último» sector dos serviços públicos que o grande capital tem para devorar. É um sector de forte financiamento público e que cresceu muito rapidamente no último meio século [L’enseignement des chiffres, Le Courrier de l’UNESCO, Novembre 2000]. O capital privado pretende agora controlar mais directamente este enorme sector, tendo em vista várias finalidades vitais para o sistema capitalista: a ampla difusão dos valores ideológicos neoliberais; o negócio da educação (produtos e serviços); e a formação de um vasto exército de trabalhadores menos qualificados, vulneráveis e controláveis, a par de uma camada de quadros altamente qualificados e ideologicamente domados e confiáveis.
Mais de 40 países, incluindo muitos da Europa, inscreveram a Educação no domínio do GATS, abrindo os respectivos sectores da educação pública à competição de empresas estrangeiras. Quase 100 países fizeram o mesmo com a saúde. À medida que as negociações progridem, será difícil para qualquer país voltar a trás ou remar contra a corrente. Mas alguns países europeus têm afirmado a sua oposição ao acordo com o GATS no âmbito da Educação, e designadamente o governo belga. Segundo este: «As regras do comércio mundial não são adequadas a um sector como o da educação. Existem outros instrumentos internacionais que, pelos princípios que defendem, enfatizam o direito à educação compreendendo nomeadamente a abertura do acesso, o princípio da gratuitidade (inclusive para o ensino superior),... O Pacto Internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais de 19 de Dezembro de 1996 é disso um bom exemplo. O postulado da gratuitidade não é aliás compatível, na nossa opinião, com o postulado do serviço comercial.» [La position belge concernant les relations entre Education et Accord Général sur le Commerce des Services, 30 Août 2002,
http://www.urfig.org/agcs-campagne-education-position-belge-pt.htm ].
Entretanto, a OMC já contratou a empresa Global Alliance for Transnational Education (GATE) para inventariar políticas mundiais que «discriminem contra fornecedores estrangeiros de serviços educativos». Os resultados deste «estudo» serão usados para obrigar os países que ainda detêm um sector de educação pública «fechado» a abri-lo ao mercado mundial. A GATE foi constituída nos EUA em 1995 para tratar da questão (e poder gerir o negócio) do ensino superior transnacional; tendo estudado os seus padrões para efeitos de «consistência», estabeleceu uma rede de cooperação internacional entre corporações, instituições de ensino, agência de acreditação, organizações inter-governamentais e representantes de governos e, finalmente, desenvolveu uma metodologia de avaliação de qualidade e de acreditação para o ensino superior transnacional. GATE foi doada agora (Agosto 2003) pela entidade constituinte, Jones International Ltd., à US Distance Learning Association (USDLA). Esta foi uma associação constituída em 1987 para fornecer serviços de informação, intermediação e jurídicos, a instituições de ensino secundário, ensino superior, educação contínua e ensino doméstico («home schooling»), bem como a corporações, departamentos governamentais e até às forças armadas, no âmbito da aprendizagem à distância).

Jogo de enganos

Desde o início da década 1990 os sistemas educativos têm sido alvo da imposição de mutações de política que reflectem e estão em consonância com as orientações da doutrina neoliberal no ataque e desmantelamento dos serviços públicos em geral, designadamente: redução do financiamento público, descaracterização dos objectivos do sistema educativo, introdução em força das TIC, descentralização e desregulamentação, facilitação e estímulo à privatização do ensino, enfim, um conjunto de medidas que alteram a relação dos cidadãos com o Estado e os deixam mais desprotegidos para que assim se conformem com as características exigidas pelo grande capital para a força de trabalho que este pretende explorar.
A Escola é mudada para que melhor sirva a economia na actual fase de desenvolvimento das forças produtivas e de concentração do capital, ou seja, formando o perfil (crescentemente assimétrico e estratificado) de qualificações e conferindo as «competências» (sincréticas e fragmentadas) para a flexibilidade que lhe convêm. Também, para que a Educação se torne ela mesma em mercadoria e a Escola ela mesma uma boa oportunidade de negócio. E como sempre, para que o sistema de ensino cumpra a sua tradicional função ideológica de perpetuação do sistema político instalado no poder, o que agora significa educar para a obediência aos valores do mercado, incluindo a competitividade (anti-solidária) e o consumismo (não sustentável).
No Século XIX, ao lado do ensino primário, destinado aos filhos das classes trabalhadoras e à sua doutrinação de classe e patriótico, o ensino secundário destinava-se aos filhos dos estratos sociais superiores, que deveriam ocupar lugares de enquadramento e direcção da sociedade burguesa.
No Século XX, as transformações científico-técnicas, as intensificações nas esferas industrial e comercial, e a complexificação da administração, exigiram o crescimento da força de trabalho qualificada. O sistema educativo teve de corresponder à essa exigência, compreendendo: pronunciado crescimento do ensino superior, diversificação das saídas escolares e das modalidades de ensino e acrescida selectividade dos jovens estudantes. Acentuou-se a função económica do ensino, em relativo prejuízo da sua função social. Neste contexto, a mobilidade social facultada pela aprendizagem e o mérito pessoal, não tendo sido posta em causa, perdeu ainda mais a sua eficácia, e o sistema de ensino, no fim do século XX, tende a reproduzir mais rigidamente a estratificação sócio-económica vigente. Por isso mesmo, para «justificar» este facto iludindo-o, nunca o discurso de política educativa foi tão persistente em repetir ideias e propósitos de igualdade de oportunidades, justiça social e de primado do mérito, como nos recentes anos de ascensão do ideário neoliberal, mas para fazer justamente o contrário. Para tentar enganar-nos.


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