Velho hábito

Correia da Fonseca
Como aqui várias vezes tem sido anotado, o recurso aos canais recebidos por cabo (ou, em alternativa muito minoritária, por antena parabólica) funciona como vereda de fuga para muitos telespectadores que querem escapar à chateza quase provocatória que domina os quatro canais «clássicos». É assim que se criou uma teleplateia para os canais Fox, designadamente para o Fox Crime, onde ao longo do dia se sucedem as séries ditas policiais, entre as quais algumas que ganharam notoriedade como «Os Sopranos» e «CSI: Miami», esta última muito carregada por situações de violência e morte não por acaso situadas na cidade que se tornou também, mas na vida real, capital do anticastrismo beligerante. Em tom diferente, sobrevive a série «Crime, Disse Ela», produzida há mais de uma década, centrada numa personagem central, Jessica Fletcher, autora de romances policiais, aparentemente inspirada na figura de Agatha Christie embora transplantada para uma pequena cidade da Costa Leste dos Estados Unidos, Cabot Cove, também ficcionada. Aí, nessa Cabot Cove de faz-de-conta, refugiam-se muitos dos que a dada altura já não suportam os crimes de diversa índole e nem sempre de ficção que em grande parte integram as ementas dos canais portugueses. Entre outras vantagens que explicam essa opção é justo registar o bom trabalho de Angela Lansbury, actriz britânica há muito radicada nos Estados Unidos, com grande e boa experiência em papéis secundários de algum bom cinema comercial e de muita televisão.

Tradição USA

O que mais me atrai em «Crime, Disse Ela» é que as estórias que a série nos conta, embora talvez nunca de superior qualidade, pertencem a um tipo de ficção policiesca ainda não seduzida pela tónica da brutalidade pluridisciplinar, digamos assim, que se tornou de regra no género por motivos antes do mais comerciais, pois parece certo que a bestialidade «vende bem», e também, presumivelmente, porque a violência está numa espécie de código genético da sociedade norte-americana. É sabido que em grande parte dos lares dos Estados Unidos as armas de fogo são tão frequentes, dir-se-ia até que tão in dispensáveis ao pleno conforto mental dos residentes, quanto os rosários ou os terços nas cabeceiras das camas nos lares portugueses das famílias de catolicismo mais tradicional. Aliás, é sabido que os norte-americanos se habituaram ao longo da sua História à prática do assassínio ou mesmo do massacre como actividade natural: massacre dos índios numa primeira fase, assassínio dos negros como «direito» exercido pelos brancos numa segunda fase, agora massacre de muçulmanos a praticar a uns milhares de quilómetros ainda em implícito nome do saudável americanismo. De caminho, o «direito a matar» encontrou outras formas menores: o linchamento não só de negros, as batalhas urbanas do gangsterismo dos anos 20/30, as lutas armadas pela posse das terras, são páginas dessa cartilha não-escrita. Neste quadro, não surpreende que a ficção audiovisual norte-americana tenha deslizado para o estilo de «violência e acção» que tinge da cor do sangue por frequentes instantes os ecrãs da TV e do cinema.

O discreto charme da inteligência

E, contudo, nem sempre foi assim no «reino» da estória policial, bem pelo contrário: desde o já Avô Sherlock de Doyle, passando pelos grandes nomes de Agatha, Simenon, de toda a grande geração de autores norte-americanos das décadas de 30 a 50 (Stanley Gardner, Van Dine, muitos outros cujos nomes agora não me ocorrem ou que alongariam a citação conferindo-lhe um tom de sabedoria pelintra), a tónica da construção assentou no raciocínio como pilar fundamental. Em maior ou menor grau, conforme os autores, surgia a acção, é certo, mas como consequência do uso da inteligência. Era ainda o prestígio e o predomínio da Razão, herança verdadeiramente preciosa que vinha de séculos atrás e se mantinha também nesta área da ficção mesmo depois de, mais ou menos na viragem dos séculos XIX/XX, o racionalismo que impulsionara e permitira passos enormes na emancipação dos homens ter sido alvo de uma violenta ofensiva do irracionalismo que continua agora por aí, impante e frequentemente vencedor, na vida quotidiana das sociedades actuais. É o velho e bom hábito de pensar, e pensar bem, deixando o músculo e o tiro para depois e só se necessário. Pois bem: acontece que esse tom, implícito tributo à inteligência, ainda se sente nas estórias de Jessica Fletcher. E é a esse discreto charme que muitos se rendem, no que me parece fazerem muito bem.


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